Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O empresário, o império e a riqueza

Pela leitura da maioria dos perfis que os jornais dedicaram a Carlos Slim após sua entrada para o restrito clube das maiores fortunas do planeta, seu modo de vida estaria mais próximo do de um mexicano de classe média do que de um membro do jet-set, pelo qual ele ‘sente uma indiferença total’ [‘Carlos Slim – O Rockefeller mexicano’, de Patrice Gouy, Le Point, 16/8/2007]. ‘Nada de badalações escandalosas para esse apaixonado pelo beisebol que não usa computador, evita os jantares sociais, prefere a pimenta ao caviar e, de há muito tempo, dirige seu próprio carro’ [‘O senhor do México e do mundo’, de Frédéric Saliba, Marianne, 18/8/2007]. Na sua pessoa, tudo, portanto, indicaria ‘austeridade’ e até ‘humildade’ [‘Como Slim se agigantou’, de Brian Winter, Foreign Policy, Londres, novembro-dezembro de 2007]. Tudo… menos os números.

Segundo a revista Forbes, a fortuna de Slim chegaria a 59 bilhões de dólares em meados de 1007. Para o site mexicano de informações econômicas Sentido Común, a informação da Forbes ainda estaria longe da realidade, pois o cidadão que também é conhecido como ‘Rei Midas’ teria se aproveitado de um raio de sol na Bolsa para superar os 67 bilhões de dólares – um crescimento de quase 740%, em relação ao ano 2000. Na época, ele ocupava ‘apenas’ o 31º lugar entre as maiores fortunas do mundo.

Entretanto, só seria possível avaliar o peso dessa fortuna colocando-a no contexto do México, país em que 40% da população tem que se contentar com menos de dois dólares por dia. Com uma fortuna superior a uma quarta parte do orçamento do Estado, Slim representa mais de 40% do total da capitalização da Bolsa de Valores do México. Outro recorde imbatível: ele ‘pesa’ quase 8% do Produto Interno Bruto (PIB) do país [‘Carlos Slim, o Midas das telecomunicações’, de Anne Denis, Les Echos, 16/7/2007], enquanto John D. Rockefeller, por exemplo, nunca superou os 2,5% do PIB norte-americano.

Rico de nascença

Portanto, o perfil de um Carlos Slim ‘filho de um pequeno comerciante’ [‘O filho de um lojista da Cidade do México que construiu a estonteante fortuna de $59 bilhões de dólares’, de Stephanie N. Mehta, Fortune, 20/8/2007] talvez remeta de forma menos direta à realidade do que à maneira pela qual é contada a história do capitalismo moderno – as trajetórias de percurso ‘exemplares’, por exemplo, de cidadãos comuns cujo êxito viria recompensar a competência e o trabalho. Essas ‘trajetórias’, na verdade, têm a vantagem de despertar entre os menos ricos – que se poderiam, lamentavelmente, cansar de lutar contra desigualdades cada vez maiores – a esperança de que talvez um dia surja a sua vez. Na realidade, um dos (inúmeros) perfis de Slim publicados pela revista Le Point começa com a seguinte frase: ‘Quem nunca sonhou acordar uma bela manhã fazendo parte da grande família dos milionários? Tenha confiança, isso ainda pode acontecer com você. Novos milionários de dólares proliferam como cogumelos’ [‘Milionários de todos os países…’, de Marc-Antoine de Poret, Le Point, 26/7/2007].

Segundo a mitologia capitalista, seria através de predisposições intelectuais excepcionais – às vezes, identificáveis ainda na infância! – que se explicaria o ‘segredo’ da fortuna destes heróis modernos. Embora Slim seja provavelmente ‘bem dotado’, ele não é assim tão diferente da maioria dos freqüentadores das ‘listas Forbes’ [a revista Forbes publica anualmente a lista dos bilionários do planeta, assim como a dos norte-americanos mais ricos do mundo, a das personalidades mais célebres, a das ‘100 mulheres mais poderosas do planeta’ ou ainda a lista ‘das bolsas mais extravagantes’] e talvez sua fortuna se deva menos ao seu amor pelos números… do que ao seu berço e suas amizades políticas.

Rico de nascença, depois que seu pai – imigrante de origem libanesa – fez fortuna na indústria de imóveis por ocasião da Revolução mexicana, Carlos Slim tornou-se rapidamente uma das principais fontes de financiamento do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o México sem interrupções até o ano 2000. Isso não deixou de lhe valer alguns favores de agradecimento.

O monopólio intacto

Em 1982, a queda dos preços do petróleo desencadeou uma grave crise econômica no México. O presidente José López Portillo nacionalizou os bancos, porém seu objetivo não era o de lançar as bases para um Estado ‘socialista’ e, sim, ‘nacionalizar a dívida privada da oligarquia’ [‘Os bancos, o poder…’, de Marco Rascón, La Jornada, México, 9/5/1990]. No entanto, a elite tradicional alarmou-se e vendeu correndo suas aplicações e seu patrimônio para deixar o país mais rapidamente. Não compartilhando dessas preocupações – seus amigos continuavam no poder –, Carlos Slim aproveitou o clima de pânico para abocanhar algumas das principais empresas do país, em especial aquelas que prestavam serviços ao Estado. Seus lucros seriam gratificantes. A Seguros de México, por exemplo, principal seguradora do país e que ele adquiriu por 44 milhões de dólares, vale hoje 2,5 bilhões de dólares.

Mas seria graças a seu grande amigo Carlos Salinas de Gotari – eleito presidente em 1988 – que a fortuna de Slim iria realmente decolar. Por ocasião da ‘abertura econômica’ conduzida sob o impulso do Fundo Monetário Internacional (FMI), Salinas, embora bastante favorável ao projeto, desejava permitir a decolagem de um capital nacional capaz de resistir ao assalto das empresas norte-americanas. Um desejo menos ‘nacionalista’ do que interessado pela perspectiva de vínculos diretos com os futuros centros de lucro do país. Um dos motivos para os cuidados do presidente em prestar favores aos grandes empresários é o de que sua chegada ao poder se deu por meio de uma fraude eleitoral – a qual não passou despercebida.

São vendidas, então, centenas de empresas, de preferência a parentes seus. De dois bilionários em 1991, o México pula para 24 em 1994, ao final de seu mandato. O principal entre eles chama-se Carlos Slim.

Em 1990, numa parceira com a Southwestern Bell e a France Telecom, Slim compra a empresa Teléfonos de México (Telmex), em circunstâncias mais do que nebulosas. Além de um preço que as autoridades mexicanas tiveram a delicadeza de manter num nível razoável (cerca de 2 bilhões de dólares por 20% do capital), as condições de venda poupavam a Carlos Slim as contrariedades da concorrência: ‘Enquanto países como o Brasil e os Estados Unidos dividiram seus monopólios estatais em diversas empresas que passariam a concorrer entre si, o México vendeu seu monopólio intacto, proibindo qualquer tipo de concorrência por um período de seis anos’, explicou o Wall Street Journal [‘Os segredos do homem mais rico do mundo’, de David Lunhow, The Wall Street Joiurnal, New York, 4/8/2007].

Salários baixos

Além do mais, a Telmex foi beneficiada com a única concessão de telefonia celular de dimensões nacionais e seus concorrentes tiveram que se contentar com concessões limitadas a determinadas regiões. A empresa – que controla 90% das linhas de telefones fixos no país – é atualmente a segunda maior companhia latino-americana cotada na Bolsa de Valores. Por outro lado, a América Móvil – filial de ‘telefonia celular’ do grupo Slim – pulou facilmente para o quinto lugar entre as empresas de telefonia móvel do mundo, com 70% do mercado mexicano e mais de 120 milhões de clientes em cerca de quinze países. Mas o império de Carlos Slim não se limita às telecomunicações…

Que utilize eletricidade, ou abasteça seu carro de gasolina, ou compre um disco, ou um livro, ou uma barra de chocolate, que suba num trem, que fume um cigarro, faça esporte, assista à televisão, navegue na internet ou que use papel higiênico, o mexicano médio estará despejando seus pesos nos bolsos profundos de Carlos Slim. Seu império, o Grupo Caruso, conta, na realidade, com mais de 250 empresas em setores tão distintos quanto cadeias de grandes lojas (Sanborns), cigarros (Cigatam), mineração e química (Empresas Frisco), ferrovia (Ferromex), cabos submarinos e tubos em PVC (Condumex), pipe-lines e plataformas petrolíferas.

E ainda a informática: Slim detém 3% das ações da Apple, que comprou – golpe de sorte! – alguns dias antes de Steve Jobs voltar a assumir a presidência da empresa, um retorno que provocou uma alta de mais de 480% no valor das ações. Presente em quase todos os países latino-americanos – principalmente no setor de telecomunicações –, Carlos Slim teria decidido recentemente reforçar sua presença no setor agrícola, investindo em biocombustíveis no Paraguai.

No total, o Grupo Caruso apresenta um faturamento que supera os 150 bilhões de dólares. Emprega cerca de 120 mil pessoas, às quais são distribuídos folhetos destacando uma urgência: ‘Aumentar a produtividade, a competitividade e reduzir custos e despesas’ [‘O segredo de Carlos Slim’, de Gisela Vázquez e Alberto Bello, expansion.com, 23/12/2007]. Uma norma obedientemente posta em prática. Embora o grupo apresente um dos mais altos índices de crescimento do país, paga a seus assalariados remunerações particularmente baixas – muitas vezes, a parte das ‘gratificações’ representa mais da metade do salário.

A ‘competitividade da nação’

Tamanho sucesso abre portas (as quais, por sua vez, facilitam futuros sucessos). Portanto, Carlos Slim joga bridge com Bill Gates (seu sócio), freqüenta a família Rockefeller, o príncipe Charles, o ex-presidente do governo espanhol Felipe González (seu lobista pelo mundo afora) e o ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, cuja campanha vinha financiando (assim como o faz para a democrata Hillary Clinton).

Herança, conchavos políticos e exploração dos trabalhadores: no final, o ‘segredo’ da fortuna de Slim se deve menos a um talento especial do que às tradicionais alavancas da acumulação capitalista. Mas que nem por isso se veja nele um conservador retrógrado. Pelo contrário. Em sua opinião, o divisor de águas ocorre entre ‘a modernidade e o arcaísmo, e não entre a esquerda e a direita’ [‘O empresário mais rico do mundo e a Argentina’, de David Cayon, Perfil, Buenos Aires, 28/10/2007]. Para grande surpresa de algumas pessoas, por exemplo, Carlos Slim não esconde sua amizade com o presidente brasileiro, Luís Inácio Lula da Silva, com o qual compartilha da crítica ao neoliberalismo. Os defensores da abertura econômica convertem-se facilmente em protecionistas… após ser constituído seu monopólio.

E, para finalizar, no México os interesses de Carlos Slim precedem os da nação. As tarifas do Grupo Caruso para conexões com a internet são mais do que 260% superiores às dos países vizinhos; para a telefonia celular, são 312% mais caras; e 65% mais elevadas para a telefonia fixa, causando – segundo Guillermo Ortiz, presidente do Banco Central mexicano – um impacto direto sobre ‘a competitividade da nação’ [‘Alfinetado pela esquerda, o homem mais rico do México fala em justiça’, de Ginger Thompson, The New York Times, 3/6/2006].

Capital humano e físico

Deveria, portanto, criticar-se o monopólio de Carlos Slim? No México, ninguém se arrisca. Coluna vertebral da economia do país, o Grupo Caruso tornou-se intocável. Por meio de sua generosidade, Slim tem o prazer de tornar a classe política compreensiva: ele financia todos os partidos políticos, principalmente os dois que disputaram a última eleição presidencial [o Partido da Revolução Democrática (PRD), do candidato social-democrata Andrés Manuel López Obrador, e o Partido de Ação Nacional (PAN), do atual presidente Felipe Calderón]. Igualmente favorecidos de sua prodigalidade desde o início da década de 90, os grandes sindicatos reconhecem que suas críticas foram bastante enfraquecidas. No que se refere aos meios de comunicação, o bom senso exige – no México, como em qualquer outro país – que se abra mão de irritar os anunciantes. Carlos Slim é o mais importante deles.

Na opinião de Andrés Oppenheimer, um dos editorialistas mais lidos da América Latina, criticar a fortuna de Carlos Slim seria inútil. Pelo contrário, seria necessário ‘criar uma cultura da caridade para louvar aqueles que dão mais, como autênticos heróis’ [‘Os ricos latino-americanos deveriam doar mais’, Miami Herald, 20/9/2007]. Slim parece ter compreendido esse apelo, mas não sem antes ter esclarecido que não tinha ‘intenção alguma de distribuir a fortuna à esquerda e à direita, como um papai Noel’ [Stephanie N. Mehta, op. cit.]. Porém, em apenas alguns anos o magnata financiou 200 mil cirurgias, 70 mil pares de óculos, 150 mil bolsas de estudo e 95 mil bicicletas [‘Carlos Slim, o homem mais rico do mundo’, de Francesca Relea, El País, Madri, 12/7/2007].

E isso é apenas o início. O filantropo já anunciou que pretende investir 4 bilhões de dólares – um pouco menos de 7% do dinheiro que ele acumulou durante os sete últimos anos – em diversos projetos de caridade e educativos. O setor privado, argumenta Slim, deve ‘se dedicar intensamente à formação de capital humano e físico’ [Financial Times, Londres, 27/9/2007] para criar uma clientela para seus produtos. Ao lhe ser perguntado, pelo Financial Times, qual a sua contribuição nessa área, Carlos Slim enfatizou a sua responsabilidade: fazer com que o México aproveite ‘a experiência da empresa, [o que] pode permitir uma melhor resposta aos desafios sociais que vão além da política’ [Financial Times, op. cit.]. Em outras palavras, fazer com que o país seja administrado como uma empresa. De preferência, uma das suas.

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Jornalista