Quem acompanhou pela TV Globo o jogo Colômbia e Brasil, domingo último, pelas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2010, pôde mais uma vez apreciar os desvios da norma culta, às vezes enriquecedores, por ensejarem visão de todo original, outras empobrecedores, por representarem simples abusos e irresponsabilidades, como se os jornalistas esportivos estivessem acima de obrigações de colegas de outras especialidades na imprensa e tivessem licença para transgredir as normas.
Assim, o narrador Galvão Bueno pergunta ao comentarista Paulo Roberto Falcão se o Brasil ‘mexeu’ no intervalo.
Bem, um dos sentidos do verbo mexer, do latim miscere, misturar, é movimentar-se, e nesse sentido o Brasil não se mexeu muito no primeiro tempo.
Provavelmente, pelo contexto, os telespectadores entendiam o novo significado do verbo mexer, que não era o de misturar ou de movimentar-se, mas o de substituir alguém. Mexer no time tem este significado.
Com todos os recursos tecnológicos disponíveis, cuja excelência era constantemente reiterada por closes, repetições e novos ângulos, os telespectadores passaram quase todo o primeiro tempo sem saber que o goleiro Júlio César não levara um cartão amarelo, informação passada logo nos primeiros minutos.
O goleiro não recebera cartão amarelo, tal como erroneamente tinha sido informado por Galvão Bueno, no lance em que tentara substituir a bola murcha. E quando recebeu o primeiro, que para Galvão era o segundo, e portanto deveria ser expulso, pois de acordo com as normas o segundo cartão amarelo num jogo vale por um vermelho, permaneceu em campo. Foi preciso o intervalo do primeiro para o segundo tempo para se saber que o cartão amarelo atribuído a Júlio César tinha sido dado a Lúcio.
Outro verbo curioso é enfiar, cuja origem é fio, do latim filum. No sentido figurado, como era o caso, quando se diz que determinado jogador enfiou a bola para o companheiro, é como se um fio a levasse de um a outro jogador.
Enfiar, verbo de múltiplas acepções, tem, neste caso, o sentido de colocar a bola num determinado ponto, entre adversários.
Mas colocar, no futebol, tem um significado bem diverso do que lhe dão os dicionários. Significa chute fraco e preciso na cobrança de faltas, especialmente do pênalti, em que a bola é como que colocada em seu destino com a mão. Ou, no dizer poético de Armando Nogueira, quando o jogador dá ao pé astúcias de mão.
Linguagem barroca
Desde as criativas metáforas e outras ricas figuras de linguagem barroca, com as quais o locutor de rádio, Fiori Gigliotti maravilhava os ouvintes, passando pelo entusiasmo e arranjos engenhosos na sintaxe, como fazia Osmar Santos com ‘ripa na chulipa e pimba na gorduchinha’, têm sido raros os lampejos de criatividade de nossos locutores e comentaristas esportivos. Parece que a televisão os desobriga de dominar a língua portuguesa…
Na TV Globo, especialmente, eles se distinguem pela aparência bem cuidada, ternos e gravatas de grife.
Aliás, também a origem desta palavra remete a luta. Vem do francês griffe e originalmente designava a garra pontiaguda de certos animais, passando depois, por metáfora, a significar também a engrenagem do projetor em cujos dentes as perfurações do filme são encaixadas para que ele possa ser exibido.
A grife de uma roupa, como é o caso, ensejaria que no campo e fora dele locutores e jogadores tivessem a garra de bons lutadores, convictos de que o futebol brasileiro tem uma grife insuperável, como demonstram os títulos conquistados, entre os quais o de pentacampeão do mundo, expressão literalmente inadequada e incorreta, pois o Brasil não foi campeão cinco vezes ininterruptas! Mas o uso alterou a norma e, a partir do tricampeonato conquistado no México, consolidou-se o novo uso. A rigor, o Brasil foi apenas bicampeão (1958 e 1962).
Domingo último, porém, parece que a altitude afetou também o mais popular de nossos narradores.