Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O pseudodemocrata Reinaldo Azevedo e sua patrulha autoritária

Pensar a política a partir de sua definição republicana é cogitar a capacidade de suportar, na cena pública, todos os argumentos possíveis, por mais divergentes que eles se apresentem, em busca de uma convergência ideal. Conquanto essa convergência possa, realmente, jamais existir, é justamente na sua busca, a partir do diálogo, que se baseia a república – espaço fundado pela política, uma arte eminentemente dialógica. Essa visão ‘conservadora’ da política como alicerce do diálogo exige, portanto, a garantia de que os contendores tenham seus espaços de argumentação respeitados. O outro, em um debate, é como eu, não obstante pense e argumente a partir da mais profunda divergência do que penso e argumento. Nessa leitura, o mais nefasto possível é, justamente, esvaziar o lugar de fala do outro, transformando-o num ‘sem fala’.

Transformar o ‘outro’ em um ‘sem fala’ significa esvaziá-lo do direito ao debate, rompendo, portanto, o código que sustenta o próprio embate dialógico – base da política. Mas, como se esvazia esse lugar de fala do outro? Ora, apelando-se para subterfúgios externos ao debate em questão. Assim, ‘você não pode falar porque você não tem autoridade’, ‘a você não cabe argumentar porque você não faz parte de meu grupo’, ou ‘você não pode argumentar porque está defendendo esse ou aquele lado que, sendo errado, não deve ter espaço no debate’. E, assim, o outro, destituído de lugar, está enfraquecido em seu argumento, pois, se fala a partir de um espaço ‘contaminado’, naturalmente seu argumento também o estará. Sobram, apenas, aqueles cujo discurso está autorizado, na maioria das vezes convergente. Onde só existe convergência não existe diálogo; e, por conseguinte, se a política se define pelo embate dialógico, onde não há diálogo não há política.

Espaços para a discordância

Essas questões são absurdamente relevantes no Brasil de hoje. Há em curso, atualmente, e muito em razão de algumas empresas de comunicação e de seus jornalistas, uma campanha efetiva de esvaziamento do debate, pautando-se não pela discordância de idéias e projetos, e sim, o que é grave, pela destituição do lugar de fala do outro. Muitos poderiam ser os exemplos a serem listados aqui, mas, para poupar o leitor, optou-se por apresentar apenas um, muito emblemático por sinal: o caso Reinaldo Azevedo.

No dia 1/10/07, o apresentador de TV Luciano Huck publicou na Folha de S.Paulo um artigo em que, informando o roubo de seu relógio Rolex, cobrava do poder público providências acerca da violência nossa de cada dia. Uma semana depois, foi a vez do escritor Ferréz rebater a argumentação de Huck, de certo modo justificando o assalto ao apresentador. Passada mais uma semana, veio o jornalista Reinaldo Azevedo, em um artigo em que criticava a Folha por dar espaço a Ferréz, sob o argumento de que este atentava contra o Estado Democrático de Direito em seu artigo.

Na esfera da política, portanto, o espaço foi franqueado para que as posições fossem tomadas, os argumentos fossem defendidos e, em especial, para que a sociedade pudesse, a partir do fato político que se tornou o assalto a Huck, ampliar sua discussão tanto sobre temas relacionados à violência, como (e esse foi o caso específico do artigo de Azevedo) debater a pertinência ou não, na democracia, de se instituírem espaços para aqueles que, discordantes da Lei, possam expressar essa discordância. Naturalmente, os três textos tiveram ampla acolhida por parte dos leitores da Folha, muitos concordando, muitos discordando, por meio do ‘Painel do Leitor’.

‘Picaretagem intelectual’

Qual não foi minha surpresa, no dia 18/10/2007, ao deparar com um artigo de Reinaldo Azevedo em seu blog, mantido pela revista Veja, em que ele ataca, visceralmente, todos os leitores que, por meio do ‘Painel do Leitor’ da Folha, criticaram o texto por ele escrito e publicado pelo jornal. E não ataca – atente-se – contra-argumentando nada do que foi escrito pelos leitores. Ao contrário, ataca as próprias pessoas.

Em um exercício autoritário e sinistro, Azevedo mapeou um a um os leitores discordantes de seu ponto de vista; e, alegando um ‘aparelhamento’ do ‘Painel do Leitor’ por ‘petralhas’ (substantivo criado por Azevedo para definir todo aquele que se mostra a favor do atual governo, em que mescla – graficamente de modo equivocado – as palavras ‘petista’ e ‘canalha’), publicou notas biográficas dessas pessoas, acrescidas de seus comentários irônicos e maledicentes. Assim, na seqüência da reprodução de trechos selecionados da correspondência do leitor publicada pela Folha, Azevedo publica o fruto de sua pesquisa. Por exemplo:

‘É triste perceber que nada muda nas consciências deste país. Prefiro Ferréz, Mano Brown e o mano que levou o Rolex. Isso não quer dizer apologia de crime, mas indica claramente a escolha por um dos lados.’ ROGERIO BASALI, professor de filosofia (São Paulo, SP)

Apesar do ‘São Paulo’ do endereço, é professor da Universidade de Brasília e já deu aula também na Unicamp. No dia 21 de julho do ano passado, informava o site esquerdista Centro de Mídia Independente: ‘O professor Basali, militante da causa palestina, sempre propõe em seus cursos pensar os eventos contemporâneos de violência nos territórios palestinos ocupados por Israel, visando a compreender complexas questões da política mundial a partir das reflexões filosóficas.’ O homem gosta de ‘opinar’ na imprensa. Em 2002, a seção de cartas da Veja trazia o indignado: ‘Os discos dos Racionais MC’s, desde ‘Raio X do Brasil’, estão cada vez mais maduros. Sou professor e utilizo suas músicas para ilustrar aspectos que julgo relevantes na formação crítica para o pensar‘. Sacou, meu? Ele usa o Racionais para ‘o pensar’ Procurem um texto meu em que trato a substantivação de verbos como um dos índices da picaretagem intelectual.

‘Proponho ao sr. Reinaldo Azevedo que leia O Ideal do Crítico, de Machado de Assis. Talvez ajude-o a superar sua ‘aporia vejaniana’.’ ANGELITA MATOS SOUZA

‘Aporia’ é uma das palavras-fetiche dos acadêmicos, pensei cá comigo. E fui tentar saber quem era a moça com nome de modelo, socialite e atriz. Bingo! É doutora pela Unicamp, professora da PUC de Campinas, além de ‘cientista social e cinéfila’. Há até uma foto da tipa aqui. O nome de sua tese não poderia ser, como diria Paulo Francis, mais ‘pseudo’: ‘Deus e o Diabo na Terra do Capitalismo Tardio’. Aí ela vai pensando o Brasil segundo nomes de filmes. Não é mimosa? No filme Ata-me, pensa o golpe de 1964: ‘Os militares saíram da caserna para acabar com os movimentos populares e também para resolver a pendenga em torno do modelo de desenvolvimento, em favor do grande capital monopolista, nacional e transnacional. Roberto Campos e Octávio Bulhões, ministros do primeiro governo militar, instituíram os mecanismos de articulação dependente com o mercado internacional.’ Huuummm… Viram só? Ainda bem que João Goulart ajudou com a desordem, né? De resto, essa tese não é dela, mas de René Armand Dreyfuss em 1964 – A Conquista do Estado. Tá aqui. Lido e fichado. E eu proponho a Angelita que vá estudar ou tente ser bonita… [http://veja.abril.com.br/blogs/Reinaldo – Capturado em 18/10/2007]

‘Profissionais das cartas’

Assim fez Reinaldo Azevedo com oito daqueles que discordaram de seu texto. Não há sequer um único contra-argumento aos argumentos construídos pelos leitores. Nada. Somente a pura e simples patrulha acrescida de comentários como ‘E eu proponho a Angelita que vá estudar ou tente ser bonita…’. O outro, na forma torpe em que Azevedo estabelece o ‘debate’, se torna ‘o indignado’, ‘a tipa’, ‘a mimosa’. Para justificar sua hipótese de que o ‘Painel’ da Folha está aparelhado, Azevedo argumenta que os leitores que criticaram seu texto são os ‘profissionais das cartas’, sujeitos que vivem para o prazer de criticar esse ou aquele nas sessões de cartas de jornais e revistas. Não, essas pessoas não são consideradas aptas ao debate, pois, ao cabo, são ‘tipas’, ‘indignados’, ‘mimosas’ e/ou tudo isso, ‘profissionais que são das cartas’. Os argumentos desses leitores não são válidos para o debate, uma vez que, sendo profissionais das sessões para leitores, estão usurpando o espaço do leitor ideal: aquele que concorda com Azevedo.

A liberdade de sua opinião

Em que, necessariamente, o fato de um professor escrever com freqüência para jornais e revistas ou uma doutora pela Unicamp fazer o mesmo impede que seus argumentos sejam válidos ao debate? Esses dois casos, dentre os oito mapeados por Azevedo, provavelmente publicam menos seus argumentos que o próprio Azevedo, que, blogueiro e colunista de Veja, tem espaço garantido na grande mídia. Azevedo, um profissional do texto (como todo e qualquer jornalista), parece querer negar aos demais aquilo que ele tanto preza e do que ele se farta: seu espaço para participar do debate. E o faz da pior forma possível: negando espaço para a divergência entre seus leitores, por meio dos comentários vetados em seu blog e, principalmente, zombando daquele que diverge, esvaziando-lhe o lugar de fala.

O mapeamento dos leitores contrários ao seu texto, procedido por Azevedo, é um acinte. Autoritário, ele nega o debate, rompe com os códigos do diálogo, atenta contra a política. Ao apontar o dedo para o divergente, esvaziando-lhe o lugar de fala, desautorizando-lhe o direito à opinião e à divergência, Azevedo aponta o dedo para a república, baseada no diálogo. Travestido de democrata, esse ‘jornalista’ nega solenemente a democracia na prática. Defende a liberdade de opinião: exclusivamente sua opinião e de seus convergentes.

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Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo