Na sexta-feira, 19 de março, completam-se exatos nove meses que a Procuradoria Geral da República (PGR) emitiu parecer sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3944) protocolada pelo PSOL no Supremo Tribunal Federal (STF) em 21 de agosto de 2007 (ver aqui). O parecer da PGR é totalmente favorável a ADI e, à época, o relator, ministro Carlos Ayres Brito, informou, por intermédio de sua assessoria, que sua decisão sairia em 30 dias. Até hoje, nem a decisão do relator e, por óbvio, nem o julgamento no plenário do STF aconteceram.
A relevância do tema para o país e a magnitude dos interesses em jogo fizeram com que a escolha do modelo tecnológico para a TV digital brasileira fosse objeto de debate público à época das decisões tomadas pelo governo Lula (2003-2006) [ver, neste Observatório, ‘Uma oportunidade que não pode ser desperdiçada‘, ‘Os radiodifusores falam com uma só voz‘, ‘Sobre algumas peculiaridades bem brasileiras‘ e ‘O ator principal não foi convidado‘]. No entanto, como costuma acontecer entre nós, quase quatro anos depois, embora não se tenha ainda uma decisão final sobre a legalidade dessas decisões, o assunto praticamente ‘desapareceu’ da agenda pública e se considera ‘favas contadas’ a adoção do modelo japonês.
O que os nossos jornalões estão a noticiar, sem mais, é que o ministro das Comunicações, Hélio Costa, viaja para ‘vender’ a TV digital brasileira (?!) para a América Latina, cujo modelo, aliás, já teria sido adotado por Peru, Argentina, Chile e Venezuela (ver aqui, para assinantes).
De que se trata?
A ADI 3944 sustenta a inconstitucionalidade de quatro artigos (7º, 8º, 9º e 10º) do Decreto nº 5.820, de 29 de junho de 2006. O Decreto5.820/2006 é, na verdade, uma continuação do Decreto nº 4.901/2003 e, ambos, instituem e definem as regras de implantação do SBTVD, isto é, o sistema brasileiro de televisão digital. Os artigos cuja constitucionalidade se questiona são os seguintes:
Art. 7º Será consignado, às concessionárias e autorizadas de serviço de radiodifusão de sons e imagens, para cada canal outorgado, canal de radiofreqüência com largura de banda de seis megahertz, a fim de permitir a transição para a tecnologia digital sem interrupção da transmissão de sinais analógicos.
§ 1º O canal referido no caput somente será consignado às concessionárias e autorizadas cuja exploração do serviço esteja em regularidade com a outorga, observado o estabelecido no Plano Básico de Distribuição de Canais de Televisão Digital – PBTVD.
§ 2º A consignação de canais para as autorizadas e permissionárias do serviço de retransmissão de televisão obedecerá aos mesmos critérios referidos no § 1o e, ainda, às condições estabelecidas em norma e cronograma específicos.
Art. 8º O Ministério das Comunicações estabelecerá, no prazo máximo de sessenta dias a partir da publicação deste Decreto, cronograma para a consignação dos canais de transmissão digital.
Parágrafo único. O cronograma a que se refere o caput observará o limite de até sete anos e respeitará a seguinte ordem:
I – estações geradoras de televisão nas Capitais dos Estados e no Distrito Federal;
II – estações geradoras nos demais Municípios;
III – serviços de retransmissão de televisão nas Capitais dos Estados e no Distrito Federal; e
IV – serviços de retransmissão de televisão nos demais Municípios.
Art. 9º A consignação de canais de que trata o art. 7o será disciplinada por instrumento contratual celebrado entre o Ministério das Comunicações e as outorgadas, com cláusulas que estabeleçam ao menos:
I – prazo para utilização plena do canal previsto no caput, sob pena da revogação da consignação prevista; e
II – condições técnicas mínimas para a utilização do canal consignado.
§ 1º O Ministério das Comunicações firmará, nos prazos fixados no cronograma referido no art. 8o, os respectivos instrumentos contratuais.
§ 2º Celebrado o instrumento contratual a que se refere o caput, a outorgada deverá apresentar ao Ministério das Comunicações, em prazo não superior a seis meses, projeto de instalação da estação transmissora.
§ 3º A outorgada deverá iniciar a transmissão digital em prazo não superior a dezoito meses, contados a partir da aprovação do projeto, sob pena de revogação da consignação prevista no art. 7o.
Art. 10º O período de transição do sistema de transmissão analógica para o SBTVD-T será de dez anos, contados a partir da publicação deste Decreto.
§ 1º A transmissão digital de sons e imagens incluirá, durante o período de transição, a veiculação simultânea da programação em tecnologia analógica.
§ 2º Os canais utilizados para transmissão analógica serão devolvidos à União após o prazo de transição previsto no caput.
Entre as razões apresentadas pela ADI 3944, acatadas pelo parecer da PGR, vale destacar:
‘O artigo 223 da Constituição foi violado de duas formas. A primeira, com a utilização no texto do Decreto, do termo `consignação´ para o que é, na verdade, uma concessão. Ou seja, o Decreto, atropelando a competência do Congresso Nacional, concede às emissoras atuais um canal inteiro de 6 megahertz.
(…)
A tecnologia digital (…) é uma nova tecnologia. Se ela não acrescentasse uma capacidade maior de produzir informações e programas, tal `consignação´, em tese, poderia ser aceita, sob o argumento de que se trataria de uma mera modificação de natureza técnica. Mas trata-se de uma tecnologia que concede, e a palavra é significativa, um espaço ou espectro maior de atuação às emissoras atuais.
(…)
Ainda que se considere que a nova tecnologia não implicaria nova concessão, estaríamos, no mínimo, falando em renovação das concessões existentes. Perceba-se que a `migração´ estabelece prazos e condições às concessionárias.
(…)
Num canal de 6 megahertz, várias programações podem ser transmitidas simultaneamente, no que se convencionou denominar multiprogramação. Ao ‘consignar’ às emissoras um canal com tamanha capacidade, está-se, paralelamente, impedindo a entrada de outros atores na programação. Ao invés de se ampliarem as possibilidades de ingresso de outros canais, incluindo novas emissoras e permitindo acesso a programações variadas (…) tem-se uma verdadeira outorga de espaço maior às concessionárias que já atuam no mercado. O que provavelmente ocorrerá é o que a norma constitucional visa a impedir: o oligopólio, ou, melhor dizendo, um aprofundamento do oligopólio já existente.
Quem ganha e quem perde
Logo depois da assinatura do Decreto nº 5.820 escrevi neste Observatório que ‘uma das maneiras de se identificar os interesses em jogo em determinada decisão é verificar como se manifestam sobre ela os principais atores envolvidos ou seus representantes. No caso da adoção pelo Brasil do modelo japonês para a TV digital, não poderia haver clareza maior sobre quem ganhou e quem perdeu ou sobre quais, de fato, foram os interesses atendidos’ (‘O ator principal não foi convidado‘).
Basta consultar agora a lista dos amicus curiae aceitos para apresentar suas razões no julgamento ainda a ser feito pelo STF para se constatar a verdade dessa afirmação.
O que sempre esteve em jogo é a oportunidade ímpar para se democratizar o mercado brasileiro de televisão. A opção feita pelo Decreto nº 5.820 favorece inquestionavelmente aos atuais concessionários deste serviço público e impede a ampliação do número de concessionários. Contraria, portanto, o princípio da ‘máxima dispersão da propriedade’ (maximum dispersal of ownership), vale dizer, da pluralidade e da diversidade.
Mais do que isso: o Decreto 5.820/2006 impede a extensão da liberdade de expressão a um maior número de brasileiros que, a não ser acatada a ADI 3944, continuará sendo exercida prioritariamente por aqueles poucos grupos que controlam a grande mídia e equacionam liberdade de expressão com sua liberdade de imprensa.
Às vésperas da assinatura do Decreto 5.820/2006, a Frente Nacional por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital, que reunia cerca de 40 entidades, divulgou um manifesto que terminava com a afirmação: ‘O governo estará cometendo um erro histórico, que não poderá ser revertido nas próximas décadas’ (ver aqui).
Quanto mais tempo demorar a decisão do STF sobre a ADI 3944, mais o Decreto 5820/2006 se tornará ‘irreversível’. É urgente, portanto, que o STF faça o julgamento e, sobretudo, tome uma decisão que evite a confirmação deste ‘erro histórico’.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)