Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Os anos passam e a história se repete

Discutir as políticas de comunicação no Brasil é, muitas vezes, debater sobre o nada. Em um setor no qual as novidades mais concretas são, muitas vezes, apenas ‘a primeira minuta de um anteprojeto’, resta apenas inferir possibilidades a partir das declarações dos atores dessas políticas. Com a proposta de criação de uma rede de televisão pública, recentemente divulgada pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, não é diferente. Nesse caso, não há nem ao menos o anteprojeto, mas o debate já está quente.


Juntando os cacos de informações levadas a público por Hélio Costa, pode-se supor que o debate, por enquanto, está desviado do seu foco primordial. A imprensa está olhando para o lado, e denuncia um suposto ‘chavismo’ na política de comunicação do governo Lula. A Academia olha para si mesma, e resgata o velho embate entre os conceitos de televisão pública e televisão estatal. O correto, porém, é olhar para trás. Assim descobriremos que o que temos de mais importante não é uma questão de conteúdo, e sim de infra-estrutura.


Transmissão em rede


Por ‘olhar para trás’, entenda-se ‘ver a nossa própria história’. Voltemos à noite do dia 1º de setembro de 1969. Nessa data, foi ao ar a edição nº 1 do Jornal Nacional, primeiro programa transmitido em rede no país. Para o governo militar, era a exaltação da ‘integração nacional’. Para a Rede Globo, uma grande cartada – talvez a mais importante na consolidação de sua liderança no mercado de comunicação brasileiro. Já para o público, o resultado do gasto de seu dinheiro na construção de uma grande infra-estrutura de telecomunicações.


O ‘milagre tecnológico’ que tornou possível a rede de televisão foi um sistema de transmissão de microondas construído pela Embratel – à época, uma estatal ligada à holding Telebrás. A fonte dos recursos foi pública, mais especificamente o Fundo Nacional de Telecomunicações, criado em 1962 pelo Código Brasileiro de Telecomunicações. Posteriormente, satélites também passaram a ser utilizados e o padrão de transmissão em rede tornou-se dominante na televisão.


Passados quase 40 anos, temos outra vez diversos elementos daquela época. O ‘milagre tecnológico’ da vez atende pelo nome de TV digital. O suposto interesse nacional também está presente – não mais com o nome de ‘integração nacional’, e sim de ‘defesa do conteúdo brasileiro’. E a estrela principal: novamente a necessidade de viabilizar uma infra-estrutura dispendiosa que possa tornar essa nova tecnologia acessível.


Broadcasting de imagem


Até a Embratel reapareceu, com o mesmo nome, mas agora privatizada e no papel de bandida. Durante a audiência pública realizada na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados para debater o tema (quarta, 28/3), o ministro Hélio Costa ressaltou que, com a privatização das telecomunicações, foi vendida a nossa rede pública (sim, exatamente aquela cuja construção se iniciou na década de 1960). ‘Quando vendemos a preço de banana as nossas companhias na privatização, vendemos nossa rede pública’, disse.


Costa afirmou que ‘quem tem a rede não é o governo brasileiro, não é sequer uma empresa nacional (…). Hoje, em caso de emergência, se o presidente quiser fazer rede nacional, temos que pedir licença no México’. O mexicano em questão é Carlos Slim, controlador da Telmex e da Embratel.


Quem também tem de ‘ir ao México’ são as redes de televisão brasileiras, já que a Embratel é monopolista da infra-estrutura necessária à formação de redes de televisão. Talvez prevendo essa situação, as principais emissoras, na época da privatização, já haviam demonstrado sua preocupação com a privatização das redes de microondas e dos satélites destinados à transmissão de sinais de TV. Mas ao final terminaram por se calar, já que a privatização das telecomunicações, apesar desse inconveniente, era de grande interesse do setor de comunicação social – especialmente de grupos privados de radiodifusão, àquela época, inclusive, parceiros em consórcios que concorriam nos leilões.


Atualmente, estima-se que algo em torno de 40% a 50% da receita da Star One, empresa resultante da parceria entre Embratel e Societé Européene des Satellites para o ramo de comunicações via satélite, seja oriunda do serviço de broadcasting de imagem. Aplicando esses percentuais à demonstração de resultados de 2005 da Star One do Brasil, significaria algo entre 150 milhões de reais e 192 milhões de reais gastos pelas redes de TV ao ano apenas com satélites, excluindo portanto o que é pago pela utilização de redes terrestres.


Dois coelhos com uma cajadada


Quando se propõe a criação (de novo) de uma rede pública de televisão, e essa proposta ganha o apoio da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, o que vemos na verdade é a história ser repetida. Uma rede de televisão digital pública, devido a suas características técnicas e econômicas, pode facilmente se tornar uma rede de televisão digital de uso público compartilhado. Teríamos, portanto, uma alternativa ao atual monopólio da Embratel, o que poderia até, de fato, beneficiar o sistema público de comunicação, mas que com certeza beneficiaria ainda mais as redes privadas de TV.


Além disso, o setor privado poderia se desonerar de grande parte dos recursos necessários à implantação da TV digital. Segundo dados constantes do ‘Modelo de Referência do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre’ elaborado pelo CPqD, o custo necessário ao atendimento de 100% da população brasileira com TV digital seria de aproximadamente 4,3 bilhões de reais para as emissoras privadas, e de 1,2 bilhão de reais para as públicas. Mas uma alternativa lógica para evitar as duplicidades de estrutura que justificariam tais gastos separados entre público e privado seria a organização da figura do ‘operador de rede’, uma infra-estrutura única para a transmissão de todos os canais, tanto públicos quanto privados.


Ao final do processo, dois coelhos mortos: transição para o padrão digital concluída e construção de uma rede de transmissão pública e compartilhada, alternativa ao atual monopólio. E a cajadada, mais uma vez, será financiada com dinheiro público.

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Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília, consultor legislativo da Câmara dos Deputados para as áreas de Ciência e Tecnologia, Telecomunicações, Comunicação Social e Informática