A primeira discussão sugerida pelos dois meses de gestão de Ana de Hollanda no Ministério da Cultura (MinC) não envolve apenas o tema do direito autoral. Em pauta está o destino dos cerca de R$ 2 milhões investidos durante pelo menos três anos do governo Lula para a preparação de um projeto que deveria chegar ao Congresso este ano. O valor, levantado pelo Globo, diz respeito a viagens, seminários e reuniões realizados desde o lançamento do Fórum Nacional de Direito Autoral, em dezembro de 2007, pelo então ministro Gilberto Gil. É uma quantia que, caso a reforma da Lei do Direito Autoral seja abandonada, será jogada no lixo.
O valor gasto na preparação do projeto da nova lei serviria, por exemplo, para financiar por três anos as atividades de 11 Pontos de Cultura, um dos pilares da gestão cultural do governo Lula, cuja expansão foi prometida pela campanha de Dilma Rousseff. Mas a verba foi utilizada para a realização de 80 reuniões e oito congressos em diferentes cidades do país.
Consulta com oito mil sugestões
O evento mais significativo foi um seminário internacional ocorrido em novembro de 2008, em Fortaleza, com a presença de representantes da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Vieram ao Brasil especialistas de México, França, Índia, África do Sul, Espanha, Egito, Argentina e Alemanha, entre outros. Todo o debate resultou num anteprojeto, que ficou disponível para consulta pública entre 14 de junho e 31 de agosto do ano passado, a fim de que recebesse contribuições. A gestão anterior do MinC contabilizou oito mil sugestões e diz ter estudado todas elas antes de enviar o texto para o Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (Gipi) e para a Casa Civil.
Assim que assumiu o ministério, Ana de Hollanda pediu o projeto de volta da Casa Civil para uma revisão. Pouco depois, ela ordenou que se retirasse do site do MinC o selo do Creative Commons, um atestado de compartilhamento livre de conteúdo na internet. Em sua primeira entrevista coletiva no cargo, ela afirmou que não concordava com ‘mudanças radicais de uma hora para outra’ na lei e que não via a ‘possibilidade de subordinar uma entidade como o Ecad ao governo’.
Um dos pontos mais sensíveis do projeto está exatamente na criação de um órgão fiscalizador do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad, uma entidade que reúne associações de compositores e músicos e que hoje exerce com autonomia suas atividades de recolher e repassar os direitos aos autores.
– Por um lado, o governo anterior sintetizou o debate do direito autoral através do acesso à cultura e não da reestruturação da cadeia da música para a remuneração dos autores, que é o mais importante. E ninguém ficou sabendo qual foi o texto final enviado para a Casa Civil – afirma Luciana Pegorer, presidente da Associação Brasileira de Música Independente (ABMI). – Já o problema do governo atual é a falta de posicionamento. Isso cria margem para um disse-me-disse.
As dúvidas foram alimentadas esta semana [passada] pela indicação para a Diretoria de Direitos Intelectuais (DDI) do MinC da advogada Marcia Regina Barbosa, servidora da Advocacia-Geral da União. Ela vai substituir Marcos Souza, o coordenador do projeto de revisão da lei. Marcia teria sido uma indicação de Hildebrando Pontes Neto, ex-presidente do antigo Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) e hoje advogado do Ecad. O próprio Hildebrando foi cotado para o cargo e chegou a se reunir com Ana de Hollanda em Brasília.
– O fato de ter havido uma mudança na DDI não significa retrocesso. A Marcia é servidora da AGU e especialista em direito autoral. É injusto o que falaram dela, associando seu nome ao Ecad. Ela é isenta, não representa nenhum interesse – diz Vitor Ortiz, secretário-executivo do MinC. – Considero normal que exista uma ansiedade da sociedade. Mas eu garanto que vamos dar continuidade ao trabalho anterior. Os estudos, os congressos, as consultas públicas, tudo isso será levado em conta.
Ortiz acrescenta que Marcia, apesar de ainda não nomeada oficialmente, já está trabalhando com o texto da lei, e que em breve retomará o diálogo com a sociedade:
– A nova diretora vai verificar o anteprojeto que foi elaborado. Mesmo que o texto atual fosse este, ele ainda precisaria ir para o Congresso e passar por mais um processo de discussão. A gente só pede calma para conduzir um tema tão importante e complexo como esse. A ministra não vai abandonar o debate.
Roteiristas pedem continuidade
A preocupação em torno do futuro da Lei do Direito Autoral fez com que a associação Autores de Cinema, que reúne roteiristas como Adriana Falcão, Bráulio Mantovani, Jorge Durán, Marçal Aquino e Paulo Halm, divulgasse na quinta-feira [3/3] à noite um carta em apoio à reforma da lei.
‘A ministra Ana de Hollanda afirma que é objetivo da sua administração defender o direito autoral. Apoiar esse projeto de lei, tão amplamente discutido pela sociedade e que visa exatamente garantir os direitos dos autores, é o que esperamos dela neste momento’, diz a carta.
– A nova lei é um avanço de quem tem direito a receber, particularmente para diretores e roteiristas – afirma David França Mendes, presidente da Autores de Cinema. – Houve investimento para se chegar ao ponto a que se chegou. Não só do governo. Pessoas viajaram, gastaram tempo e dinheiro. A gente fica muito surpreso em ver pessoas do MinC dizendo que vão rever o processo para defender o autor quando era a nova lei que incluiria mais artistas na distribuição de direitos.