No início de 2002, o jornalista e conselheiro eleito para a primeira gestão do Conselho de Comunicação Social (CCS) Carlos Chagas anuncia para os presentes da primeira reunião do órgão uma sentença que se faria profecia: ‘Ecoou pelos corredores do Congresso: o Dr. Roberto não gostou’. Tratava-se, evidentemente, do presidente das Organizações Globo e de sua primeira impressão a respeito do conselho, que iniciava suas atividades com grande expectativa por parte das organizações da sociedade civil dedicadas à pauta da democratização das comunicações.
Seis anos depois, o CCS está inativo. Segue à espera da boa-vontade deste ou do próximo presidente do Congresso Nacional, responsável por sua ativação e, nos últimos anos, por sua inanição. O fato de a existência do conselho estar condicionada a vontade política da mesa do Senado faz parte de uma série de mecanismos criados para alterar o texto original apresentado pela deputada e relatora Cristina Tavares, durante a Assembléia Constituinte de 1988 e, assim, solapar a proposta de um conselho autônomo e imbuído de ferramentas eficazes de controle social da comunicação.
O balanço necessário sobre o setor das comunicações e o CCS, mais especificamente, nestes 20 anos da Constituição ‘cidadã’ começa entre os últimos dias do regime militar e a eleição de Tancredo Neves em janeiro de 1985. O presidente recém-eleito admitia a possibilidade de rediscutir o modelo privatista e altamente concentrado dos meios de comunicação no Brasil, e os movimentos sociais, inspirados pela abertura política, começavam a retomar o discurso da democracia no setor.
‘Sabemos que as concessões de rádio e de televisão são distribuídas por critérios exclusivamente políticos, partidários e até personalistas’, afirmava Tancredo, logo em sua primeira entrevista coletiva depois de eleito. ‘A primeira idéia que me ocorre, sem entrar no exame detalhado da matéria, através da consulta feita às entidades de classe nela interessadas, parece ser a criação de um Conselho Nacional de Comunicações que tenha participação direta não apenas na decisão da concessão de rádio e de televisão, mas, sobretudo, na fiscalização do seu funcionamento.’
A realidade, entretanto, era bem mais complexa, e Tancredo Neves promoveu o baiano Antônio Carlos Magalhães ao ministério ‘que ele quisesse’. No caso, o escolhido foi justamente o das Comunicações. Por pressão da Globo, manteve também no cargo Rômulo Furtado, influente secretário-geral do ministério por dois governos no período autoritário, o que, indiretamente, já delineava o ambiente dos embates que viriam a ser travados na Constituinte.
Uma batalha perdida
Foi tarefa da deputada Cristina Tavares, do PMDB de Pernambuco, relatar e apresentar o primeiro anteprojeto para apreciação do plenário da Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação. Nesta proposta constava a instalação de um Conselho Nacional de Comunicações composto por 15 membros, entre representantes de entidades empresariais, sindicais, governo e sociedade civil. Seria sua atribuição, entre outras, outorgar e renovar autorizações e concessões para exploração de serviços de radiodifusão.
O projeto recebeu dezenas de emendas e foi sucessivamente derrotado, inclusive, por conta dos votos do próprio PMDB, cujos deputados em bom número se sentiam ameaçados por serem eles mesmos detentores de concessões de rádio e TV. O deputado Arthur da Távola (PMDB-RJ) ainda voltou a apresentar projeto semelhante em relação à instituição do conselho no subcomitê da Ciência e Tecnologia e da Comunicação da Comissão Temática da Família, da Educação, Cultura e Esportes. Este foi igualmente suplantado, mesmo após modificações.
Foi a emenda final do deputado José Carlos Martinez (PMDB-PR), detentor de concessões de TV no Paraná, ao relatório de Tavares, a responsável por enterrar definitivamente a criação do Conselho Nacional de Comunicação nos termos propostos pela relatora. A proposta de Martinez, acatada pela Constituinte, atribuiu à União, ad referendum do Congresso Nacional, ‘outorgar concessões, autorizações ou permissões de serviços de radiodifusão’.
O Conselho de Comunicação Social como conhecemos, auxiliar do Congresso Nacional e sem nenhuma autonomia, foi resultado de uma proposta assumida por ninguém. Assim como outras iniciativas progressistas que surgiram durante a Constituinte, esta também foi marcada pela profusão de palavras instigantes acomodadas entre interesses privados, e que se revelaram sem nenhuma efetividade prática.
‘Esperava-se à época o que se espera até hoje: a criação de um órgão com participação popular e democrática que atuasse de forma decisiva sobre todas as decisões relativas à comunicação’, avalia Diogo Moyses, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. ‘No fim do processo constituinte, o lobby dos radiodifusores tinha transformado este conselho imaginado em um órgão meramente consultivo e restrito ao Senado. Até hoje, isso tem graves conseqüências para a sociedade brasileira, que demanda controle público sobre a comunicação social.’
Existência no papel
O CCS não foi instalado imediatamente e permaneceu como letra-morta na nova Constituição por alguns anos. Mas a década de 90 trouxe consigo uma piora sensível na qualidade das programações de TV. A sensação de total liberdade experimentada pelas grandes empresas de comunicação (em um ambiente de não regulamentação dos recém-criados direitos e deveres constitucionais para o setor) era diretamente direcionado para a busca de audiência a qualquer custo.
Nesse contexto surgiu a iniciativa de regulamentação do conselho, a partir de proposta do deputado Antônio Britto (PMDB-RS) e sancionada pelo presidente Fernando Collor no mesmo ano.
Reuniões se seguiram para definir a composição do conselho, colocando o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) à frente do processo. Não se sabe com exatidão quais foram os termos da negociação com o empresariado, mesmo porque, depois do falecimento do principal negociador pelo FNDC, o jornalista Daniel Herz, não há muita disposição dos principais atores da época em comentar as polêmicas do caso.
De qualquer forma, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) defendia a composição negociada como ‘a possível’, enfrentando dura oposição de parlamentares como Pedro Simon (PMDB-RS). O formato final previa treze membros, portanto, empresas e sindicatos dividiriam igualmente oito vagas, restando cinco para a sociedade civil. Para Simon, o conselho precisava contar com ‘uma certa independência para ser um conselho de debate, de discussão entre as partes e não um conselho em que um determinado setor, o mais forte, terá prioridade’. No caso, os empresários.
‘A proposta original tinha como modelo o FCC [Federal Communications Commission] norte-americano, que conta com cinco membros, mas que não tem a ver com a realidade brasileira. Nunca houve um consenso’, conta Venício A. Lima, professor da Universidade de Brasília. ‘O CCS tem um problema de origem’, concorda Ricardo Moretzsohn, que teve assento no CCS pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) entre 2002 e 2004. Nem mesmo o fato de que o FCC é uma agência reguladora no coração do liberalismo e que conta com similares na maioria dos países desenvolvidos ajudou a superar a intransigência dos empresários.
Regulamentado em 1991, o CCS ainda esperou por mais de uma década para que viesse a ser instalado. E novamente foi um emaranhado de negociações nada públicas que permitiram o avanço. Negociações que se se deram no âmbito das discussões sobre a revisão da Lei 8.977/95, que aprovou a entrada de 30% de capital estrangeiro nas empresas de comunicação nacionais. Em contrapartida, logrou-se a instalação do Conselho de Comunicação Social.
Buscando um sentido
A primeira gestão do Conselho de Comunicação Social parece ter justificado a preocupação de Dr. Roberto. Mesmo com todas as limitações pela falta de independência, seu início contou com uma composição equilibrada e gente disposta a trabalhar. Moretzsohn conta que a experiência foi tão positiva que assustou os empresários e os próprios parlamentares, produzindo relatórios bem fundamentados sobre concentração da propriedade dos meios e, já naquela época, a respeito da digitalização.
Mas a ‘brincadeira’ parou por aí. Veio a segunda gestão, presidida pelo escritor Arnaldo Niskier e apinhada de representantes dos interesses da grande mídia ocupando as vagas da sociedade civil, como previa o senador Pedro Simon. ‘A segunda gestão teve a sua composição deturpada. Tem que haver um mecanismo para indicação das vagas pelos movimentos sociais’, afirma Moretzsohn, do CFP.
Foi o suspiro melancólico do Conselho de Comunicação Social. Apesar de sua existência estar explícita na lei, não houve a renovação da gestão e desde 2006 ele está ocioso. Apenas o presidente do Congresso pode restaurá-lo, o que já foi defendido, na teoria, pelo atual, o senador Garibaldi Alves (PMDB-RN). Para a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), o conselho ‘tem pouca eficácia’. ‘Queríamos um conselho, mas, lamentavelmente, só depois de muito tempo é que o CCS veio a ser instituído. Depende da presidência do Senado, e mesmo a Câmara não demonstra interesse.’
‘O problema é que a mesa do Congresso é quem manda. Há muita resistência por parte dos senadores para a instalação, pois muitos são detentores de concessões’, diz Venício Lima. ‘Ele não está instalado atualmente porque, mesmo sem poder, pode incomodar’, completa.
Ainda existe a expectativa de retomada do CCS para o futuro próximo. Para Lima, tudo depende da conjuntura e da ‘correlação de forças’ no Congresso. ‘A mesa do Senado foi sujeita a muito desgaste recentemente’, reflete. ‘Devemos insistir em um movimento que reformule tanto o caráter quanto a composição do conselho’, confia Ricardo Moretzsohn.
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Do Observatório do Direito à Comunicação