Ao comentar manchete de primeira página e matéria sob o título ‘Convergência de mídias leva governo a desistir de veto à propriedade cruzada’ no Estado de S.Paulo (27/1), levantei recentemente duas questões: (1) quem estaria interessado em confundir ‘convergência de mídias’ com propriedade cruzada? e (2) quem estaria interessado em colocar na agenda pública a precária hipótese aventada por um conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, como se aquela opinião pudesse constituir uma decisão de governo em matéria que, de fato, é constitucional? (Ver, neste Observatório, ‘A quem interessa a confusão?‘)
As respostas às questões começam a aparecer publicamente, mais rápido do que o esperado.
O Grupo RBS
Em editorial – ‘Mudança de rumo’ – publicado no dia 31 de janeiro nos seus oito jornais, comentado em suas 24 emissoras de rádio AM e FM e nos seus 18 canais de TV aberta espalhados pelo Rio Grande do Sul e Santa Catarina, o Grupo RBS – afiliado das Organizações Globo – afirma sem meias palavras:
‘Felizmente, o governo Dilma começa a emitir sinais de que está mudando o rumo do debate sobre o novo marco regulatório do setor de comunicações. Ao que tudo indica, sairão de cena velhos ranços ideológicos, entre os quais a campanha pelo veto à propriedade cruzada de veículos de informação e a obsessão pelo controle social da mídia, e entrarão em discussão temas objetivos como a própria liberdade de imprensa, a qualidade dos conteúdos e o cumprimento rigoroso dos preceitos constitucionais. (…) É bom que assim seja, até mesmo para que o país não perca tempo e energia com impasses ultrapassados, como o do veto à propriedade cruzada. A própria tecnologia se encarregou de derrubar este conceito, pois a convergência das mídias fez com que informações, dados e imagens passassem a trafegar simultaneamente em todas as plataformas’ (íntegra aqui).
Para o Grupo RBS, a ‘convergência das mídias’ encarregou-se de derrubar o conceito de propriedade cruzada que, aliás, é ‘ranço ideológico’, ‘perda de tempo e energia’ e ‘impasse ultrapassado’.
O editorial ‘Mudança de rumo’ poderia ser considerado cômico se não se tratasse de uma questão fundamental para as liberdades democráticas. E mais: como se o Grupo RBS não controlasse praticamente todas as formas de comunicação de massa no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, constituindo um exemplo emblemático dos malefícios que a propriedade cruzada provoca para a pluralidade e a diversidade que deveriam circular no ‘mercado livre de idéias’.
E sabe quem pensa assim? O Ministério Público Federal (MPF) de Santa Catarina.
Ação civil pública
Em janeiro de 2009, uma ação civil pública foi proposta pelo MPF-SC com o objetivo de anular a aquisição do jornal A Notícia, de Joinville, e reduzir o número de emissoras de televisão do Grupo RBS aos limites permitidos pelo decreto-lei 236 de 1967 (Ação nº. 2008.72.00.014043-5, disponível aqui).
À época, um dos procuradores que elaborou a medida judicial, Celso Três, concedeu entrevista na qual afirmava que ‘a RBS governa o estado (de Santa Catarina)‘.
Além disso, nota do MPF sobre a Ação afirmava:
‘…o grupo (RBS) detém no estado o controle de seis emissoras de televisão; os jornais Diário Catarinense, Hora de Santa Catarina, Jornal de Santa Catarina e, recentemente, o jornal A Notícia; além de três emissoras de rádio. O pool de emissoras e jornais utiliza o nome fantasia Grupo RBS. Com o conhecimento expresso do Ministério das Comunicações, as empresas são registradas em nome de diferentes pessoas da mesma família com o objetivo de não ultrapassar o limite estabelecido em lei. Para o MPF, a situação de oligopólio é clara, em que um único grupo econômico possui quase a total hegemonia das comunicações no estado. Por isso, a ação discute questões como a necessidade de pluralidade dos meios de comunicação social para garantir o direito de informação e expressão; e a manutenção da livre concorrência e da liberdade econômica, ameaçadas por práticas oligopolistas’ (ver aqui).
O processo da ação civil pública nº 2008.72.00.014043-5 encontra-se concluso desde outubro de 2010 e aguarda a sentença a ser proferida pelo juiz Diógenes Marcelino Teixeira, da Terceira Vara Federal de Florianópolis.
Interesses explicitados
Enquanto a Justiça não se pronuncia, o Grupo RBS declara publicamente seus interesses como se fossem coincidentes com ‘os interesses do público e do país’. Ignora o parágrafo 5º do artigo 220 da Constituição e, mesmo assim, recomenda ‘o cumprimento rigoroso dos preceitos constitucionais’.
Defende e pratica a propriedade cruzada – que, na verdade, constitui uma forma disfarçada de censura – e tem a coragem de afirmar, em editorial, que ‘a liberdade de expressão não é uma prerrogativa dos meios e dos profissionais de comunicação – é um direito sagrado e constitucional dos cidadãos brasileiros’.
Pelo menos, a cidadania fica sabendo, diretamente, de quem e quais os interesses que de fato estão em jogo quando se defende a propriedade cruzada.
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Professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher,2010