A discussão em torno dos limites liberdade de expressão na internet mostrou-se urgente nas últimas semanas com duas polêmicas decisões da Justiça brasileira, que colocaram em xeque a responsabilidade por conteúdos postados por terceiros na rede. O diretor-geral do portal Google no Brasil, Fábio Coelho, foi detido pela Polícia Federal (na quarta-feira, 26/9) por não cumprir uma decisão da Justiça Eleitoral do Mato Grosso do Sul. O mandado determinava a retirada de um vídeo considerado ofensivo por Alcides Bernal, candidato a prefeito de Campo Grande. O material havia sido postado do portal de vídeos YouTube, que pertence ao Google.
No sábado (29/9), a Justiça Eleitoral de Ribeirão Preto (SP) ordenou a prisão do diretor financeiro do portal, Edmundo Luiz Pinto Balthazar. O Google conseguiu obter um habeas corpus preventivo contra o mandado de segurança. Desta vez, o motivo foi o conteúdo de um blog hospedado pelo portal, que continha ataques a Dárcy Vera, prefeita de Ribeirão Preto, candidata à reeleição. O portal reafirmou que a empresa é a favor da livre opinião e defendeu o exercício da liberdade de expressão e de pensamento. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (2/10) debateu a regulação do território livre da internet a partir dessas decisões, que tiveram repercussão internacional.
O Brasil lidera os pedidos de retirada de itens da internet em um ranking produzido pelo Google para monitorar a liberdade de expressão. Somente neste ano, 21 estados brasileiros já acionaram a Justiça Eleitoral em ações contra o Google. A polêmica reforça o debate sobre o Marco Civil da Internet, projeto de lei que estabelece direitos e deveres de provedores de serviços, usuários e poder público na rede mundial de computadores. O projeto aguarda votação na Câmara dos Deputados.
Para discutir este tema, Alberto Dines recebeu no estúdio de Brasília Virgílio Almeida, coordenador do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI) e secretário de Política de Informática do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. PhD em Ciência da Computação pela Vanderbilt University, Almeida foi professor e pesquisador visitante em diversas instituições internacionais. É membro da Academia Brasileira de Ciências, da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS) e pesquisador do CNPq. Em São Paulo, o programa contou com a presença do jornalista Caio Túlio Costa, consultor de mídias digitais. Caio Túlio foi o primeiro ombudsman da imprensa brasileira. Trabalhou na Folha de S.Paulo durante 21 anos, foi um dos fundadores do UOL, do qual foi diretor geral até 2002, e presidente do iG. É professor de Ética Jornalística e autor do livro Ética, jornalismo e nova mídia – uma moral provisória.
Avanços e barreiras
Em editorial, antes do debate ao vivo, Dines comentou que cada avanço nas tecnologias da informação é sempre acompanhado por um esforço para controlar sua difusão. Esta situação se repete desde o surgimento da impressão de livros em larga escala, dos jornais e dos veículos de comunicação de massa. “A internet instantânea, interativa e globalizada não poderia escapar da dinâmica da retaliação e as dimensões espetaculares das redes sociais as convertem em alvos preferenciais do autoritarismo”, disse o jornalista. Para Dines, enquanto o Marco Civil da Internet não for aprovado, a questão em torno da responsabilidade do conteúdo na internet tende a se agravar, pois as decisões dependem apenas do entendimento dos juízes: “O problema se complica porque no Brasil, quando se fala em regulação, tiram-se do armário os fantasmas da censura” [ver íntegra abaixo].
Um dos pontos mais polêmicos do Marco Civil é o que defende a manutenção do princípio da neutralidade da rede. De acordo com o projeto, qualquer dado que esteja na internet terá que ser tratado de forma isonômica pelos provedores de acesso. A reportagem exibida pelo programa entrevistou o deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ), relator do Marco Civil na Câmara dos Deputados. Molon explicou que, se a neutralidade for garantida, o provedor fica proibido de escolher que tipo de dado circulará com maior velocidade na rede. Assim, grandes empresas não poderão fazer acordos com provedores de conexão para trafegar mais rapidamente.
“Se a neutralidade estiver garantida, o provedor passa a ficar proibido de selecionar aquilo que a gente quer ler, aquilo que a gente deve ler, aquilo que a gente quer acessar. Ou seja, de fazer uma discriminação daqueles conteúdos”, detalhou o deputado. De acordo com Molon, com a aprovação do Marco Civil, a responsabilidade dos provedores por um conteúdo gerado por terceiros só passa a existir depois do momento em que descumprir uma ordem judicial que determine a remoção daquele conteúdo. “Com isso, nós estamos evitando que os provedores sejam transformados em juízes que devem examinar conteúdo por conteúdo, aquilo que deve ser conhecido e aquilo que deve ser retirado da internet. Liberdade combina com responsabilidade. Por isso, ao mesmo tempo em que fortalece muito a liberdade de expressão, o Marco Civil também cria instrumentos necessários para a responsabilização de quem usa mal a liberdade na internet”, sublinhou o deputado.
Anonimato na rede
Gisele Antares, advogada especializada em Direito Digital, ressaltou que a Constituição Federal defende a liberdade de expressão, mas, ao mesmo tempo, impõe limites à circulação de ideias. Ao ofender a honra e a privacidade, há a possibilidade de punição tanto na esfera cível quanto na criminal. “Você tem que usar o bom senso. Você não pode se exceder na sua manifestação. Você pode, livremente, manifestar o seu pensamento ou opinião, no entanto os excessos poderão ser punidos, sim”, alertou a advogada. Para ela, é necessário ter instrumentos para chegar aos autores das publicações na internet para que a punição seja garantida.
No debate ao vivo, Dines comentou que os Estados Unidos, país considerado a pátria da livre iniciativa e da não intervenção, toma a dianteira para regular os mercados e, assim, estimula o desenvolvimento de diversos setores. Já no Brasil, o Marco Civil ainda aguarda ser votado pelo Congresso Nacional. Virgílio Almeida explicou que o Comitê Gestor é um mecanismo de governança na internet. O órgão, que foi criado em 1995, é avaliado internacionalmente como um exemplo democrático porque é composto por 21 integrantes, dos quais apenas nove indicados pelo governo – os demais representam as empresas, indústrias, a academia e o terceiro setor.
O coordenador do CGI explicou que os Estados Unidos têm um modelo de governança semelhante ao brasileiro, mas as empresas privadas têm um peso maior e o conceito de liberdade é condicionado a determinados fatores. E há restrições severas. O coordenador do CGI ressaltou que o governo americano tem poder para verificar informações em e-mails, blogs e redes sociais.
“O Brasil esperava por uma legislação como o Marco Civil. É importante dizer que o Marco Civil foi inspirado no ‘Decálogo do Comitê Gestor da Internet’, que foi proposto após anos de discussão, com os princípios básicos, os deveres e as responsabilidades na internet”, ressaltou Virgílio Almeida. O Marco Civil, de acordo com o representante do CGI, irá fornecer subsídios para que os usuários e o Poder Judiciário possam analisar questões da difusão da informação e da participação da população na internet, especialmente em redes sociais. O CGI espera que o projeto do Marco Civil seja votado em breve porque a internet é uma importante ferramenta para trabalho, lazer, informação e manifestação do pensamento.
Cumpra-se a lei
Caio Túlio Costa criticou a postura do Google e afirmou que, do ponto de vista empresarial, a empresa foi arrogante: “Ele tinha que ter suspendido o vídeo imediatamente, quando recebeu a decisão judicial. Ele não está impedido de colocar os produtos de internet. Ninguém está impedido de levantar um vídeo no YouTube. Mas uma vez que aquilo é avaliado pela Justiça e existe uma decisão em caráter liminar, como foi esta do Tribunal Regional Eleitoral, a ordem era ‘tire o vídeo’. O Google enfrentou uma decisão judicial brasileira”. O jornalista afirmou que o juiz agiu com bom senso e liberou o funcionário do Google logo depois que aquele se apresentou e o processo foi instaurado.
Na avaliação do jornalista, o Google não pode ser elevado à condição de “paladino da liberdade de informação”. De acordo com Caio Túlio, o portal permitiu que o governo da China o censurasse para poder ganhar o mercado daquele país, e só passou a defender a liberdade de expressão quando percebeu que não conseguiria a penetração desejada.
Caio Túlio Costa ressaltou que os juízes que expediram ordens de prisão contra funcionários da direção do Google no Brasil agiram de acordo com o que está previsto no Marco Civil. O projeto prevê que o provedor deverá agir após a decisão judicial. Não cabe a ele atuar como censor e decidir o que deve ser publicado ou não em plataformas abertas como o YouTube. “Neste ponto, o Marco Civil é fantástico. Agora, tem aquilo que foi analisado pela Justiça. E se o juiz, por pior que seja, decidiu que [um conteúdo] tem que ser tirado, a decisão empresarial é ‘cumpra-se o que o juiz mandou’”, disse o jornalista.
Marco Civil atrasado
Tanto no iG quanto no UOL, onde Caio Túlio ocupou cargos de direção, a orientação era cumprir o que a Justiça determinava, mesmo que a ordem parecesse esdrúxula. Em diversas ocasiões, a polícia telefonou ordenando a retirada de um conteúdo do ar e o procedimento era responder que acatariam apenas ordens judiciais.
Para Caio Túlio, a imprensa deveria ter cobrado de forma mais enfática a celeridade na tramitação do Marco Civil. “Eu acho que poucas vezes no Brasil se fez uma lei, que é a do Marco Civil na internet, de forma tão aberta e democrática”, avaliou o jornalista. O projeto é respeitável do ponto de vista do internauta, da liberdade de imprensa e coloca os provedores com a devida responsabilidade sobre o que é público. “Você não pode culpar o mensageiro que permite que aquela mensagem seja passada”, ponderou o jornalista.
***
O Marco Civil da Internet
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 659, exibido em 2/10/2012
Cada avanço nas tecnologias da informação é sempre acompanhado por um esforço para controlar sua difusão. Assim foi no século 15, depois da adoção das impressoras desenvolvidas por Gutenberg; no século 17, quando se instituíram os periódicos; e no século 20, quando o cinema e o rádio tornaram-se veículos de massa.
A internet instantânea, interativa e globalizada não poderia escapar da dinâmica da retaliação, e as dimensões espetaculares das redes sociais as convertem em alvos preferenciais do autoritarismo. O Google virou manchete há poucas semanas quando multidões de muçulmanos indignados consideraram blasfêmia um clipe canhestro postado no YouTube e exigiriam que fosse retirado. Nos EUA e no mundo democrático foi mantido porque a liberdade de expressão é cláusula pétrea das Constituções. Em diversos países islâmicos da Ásia, onde a liberdade não é fundamental, o Google encarregou-se de retirar o clipe.
Novamente alçado às manchetes há uma semana, o diretor do Google do Brasil foi intimidado judicialmente a retirar um vídeo considerado difamatório contra um candidato a prefeito no Mato Grosso do Sul, sob a alegação de que é corresponsável pelo conteúdo que veicula.
O problema tende a agravar-se enquanto o Congresso não aprovar o Marco Civil da Internet, que tramita na Câmara dos Deputados há três anos e aguarda a votação há três meses. O problema se complica porque, no Brasil, quando se fala em regulação, tiram-se do armário os fantasmas da censura.
Os Estados Unidos, como sempre acontece, logo estabeleceram as regras do jogo. O texto brasileiro, apontado como um dos mais avançados, está na gaveta. Enquanto não sair, as pendências serão decididas pelos juízes. E, como sabemos, a cada cabeça, uma sentença.
***
A mídia na semana
>> O respeito granjeado pelo STF no julgamento da Ação Penal 470, vulgo mensalão, deve-se também aos votos tecnicamente fundamentados, embora longos e cansativos, proferidos pelos ministros. Mas, para esquentar a cobertura das sessões, a mídia está recorrendo ao recurso batido de magnificar as controvérsias, sobretudo entre o ministro relator e o ministro revisor. Discordâncias e confrontos são inevitáveis em colegiados, garantem o caráter democrático de uma corte. A espetacularização vai na direção contrária: serve apenas para valorizar o secundário.
>> A apresentadora e animadora Hebe Camargo passou seis décadas perante as câmeras de tevê, é natural a emoção do público quando sua morte foi anunciada. Mas a badalação das celebridades nas cerimônias fúnebres sugere carona e exploração.
>> O jornalista desportivo deve apenas comentar competições ou seguir os colegas da política e economia e também investigar? A opção de Juca Kfouri ficou novamente evidenciada quando, há duas semanas, denunciou o incrível roubo de informações sigilosas do comitê Londres-2012, por nove funcionários brasileiros da Rio-2016. Juca Kfouri foi em frente e ainda obteve a informação de uma das funcionárias demitidas de que cumpria ordens superiores. O escândalo acontece às vésperas de mais uma reeleição do presidente do COB, Carlos Artur Nuzman, em 5 de outubro, quando chegará a 21 anos no poder do esporte olímpico brasileiro.