Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os papéis dos Estado e do mercado

Muitos eram os desafios postos para o capítulo Da Comunicação Social que surgia, em 1988, pela primeira vez em uma Constituição brasileira. Um deles era consolidar a comunicação como um bem público. Afinal, o setor de comunicações não poderia fugir da grande disputa que esteve no cerne daquela Assembléia Nacional Constituinte: qual o papel a ser desempenhado pelo Estado e pelo mercado para que fossem garantidos os direitos positivados na nova Carta?

O contexto internacional – marcado pelo avanço do neoliberalismo na Europa e a derrocada dos governos baseados no modelo estatal-centralizador, simbolizada pela queda do Muro de Berlim – já explicava o porquê deste debate instalar-se com força no Congresso Nacional. No cenário nacional, o Brasil acabara de sair de um longo período de ditadura militar em que a imagem do Estado tinha sido muito desgastada pelo processo antidemocrático. Particularmente na área de comunicação, o uso que o governo militar tinha feito dos meios de comunicação do Estado e da regulação do setor a favor da sua legitimação fazia com que a balança da Constituinte pendesse, neste tema, para o lado do ultra-liberalismo.

Ainda assim, aprovou-se o que foi considerado à época – e ainda é considerado – uma das grandes inovações da atual Carta Magna: o Artigo 223, que prevê a complementaridade dos sistemas estatal, público e privado de comunicação. A inovação fica por conta do texto estabelecer uma diferenciação de papéis entre os três setores, o que não ocorre com nenhum dos outros direitos tratados sob o chapéu Da Ordem Social, como a saúde, a educação e a previdência social.

Mas o artigo mantém-se como um das previsões constitucionais mais polêmicas exatamente porque, como quase todos os demais artigos do capítulo da comunicação, segue até hoje sem regulamentação. A inexistência de referência legal do que venha a ser a configuração jurídica de cada um destes sistemas levou a uma grande confusão conceitual, que ao longo dos anos afastou a possibilidade de o artigo funcionar na direção imaginada em 1988.

Intenção

Para os defensores da complementaridade, sua inclusão na Constituição seria uma forma de equilibrar os já existentes sistema privado e estatal, com notória prevalência do primeiro, e também equiparar a estes uma nova figura, o sistema público. A intenção era ter um sistema de comunicação que não estivesse à serviço nem do mercado, nem dos governos do dia.

Segundo Venício A. de Lima, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) e que na época da Constituinte trabalhou como assessor técnico do Senado, a complementaridade apareceu nos textos discutidos dentro do subcomitê de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática em um dos substitutivos propostos por Artur da Távola, último relator do capítulo da comunicação. Antes disso, a idéia tinha sido descrita nos cadernos produzidos pelo Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da UnB e entregues a Tancredo Neves, logo após sua eleição, para servir de base para as políticas de comunicação da Nova República.

A explicação para a proposta da complementaridade, segundo Lima, tinha a ver com a conjuntura nacional. ‘Estávamos saindo de um período militar e traumatizados com a experiência de 20 anos de Estado militar autoritário. Então, o público era uma alternativa’, comenta. ‘A discussão sobre o público era um debate extremamente politizado porque era a forma de escapulir do autoritarismo.’

Embora a conjuntura explique a opção por ressaltar a idéia de um sistema público diferenciado do estatal, para alguns, a confusão conceitual começa aqui. ‘Não existe diferença entre ´estatal` e ´público´. O que é estatal é público, pois o Estado é, ou deve ser, público’, defende Marcos Dantas, professor da PUC-RJ, ressaltando ainda que há uma confusão entre Estado e governo. ‘Concordo, entretanto, que o Estado possa ser mais fechado ou menos fechado, mais autoritário ou menos autoritário, mais democrático ou menos democrático, mais transparente ou menos transparente, refletindo, nisso, o jogo das forças sociais e políticas que o sustentam e influenciam.’

Para o coordenador do Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB, Murilo Ramos, a separação entre o público e o estatal transformou-se em uma armadilha normativa que acabou por escapar a todos os especialistas naquele momento. Participando da assembléia do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, em maio deste ano, Ramos afirmou que o isolamento do sistema privado em relação ao estatal e ao público acaba por ignorar o fato de que o primeiro não pode existir sem a autorização e a fiscalização do Estado e da sociedade.

Problemas de execução

A confusão conceitual, no entanto, extrapola o texto constitucional, os debates acadêmicos e as discussões sobre uma possível regulamentação do Artigo 223, e se concretiza nas experiências de comunicação pública registradas como tal no Brasil. Em sua maioria, estas iniciativas nascem de projetos estatais, como as TVs Educativas e rádios ligadas aos estados e municípios. No entanto, por questões que vão da forma de organização destes veículos às conjunturas políticas nacional e regional, praticamente nenhuma deixou de estar atrelada às vontades dos governos de plantão.

‘A idéia de serviço público de radiodifusão – que tem como referência maior a BBC de Londres, a Rádio e Televisão da Alemanha, a NHK do Japão e a PBS dos Estados Unidos – nunca vingou por aqui. Até a TV Cultura de São Paulo, montada institucionalmente como emissora pública independente do Estado, jamais conseguiu viver uma possível autonomia’, avalia Laurindo Lalo Leal Filho, pesquisa da Universidade de São Paulo e ouvidor da Empresa Brasil de Comunicação.

O resultado é desastroso, segundo o professor da Universidade Federal da Bahia Othon Jambeiro. ‘O estatal é desmoralizado entre nós e o público não consegue deixar de ser estatal. Além disso, o sistema privado supre os grupos que dominam o Estado com o suporte ideológico de que dependem para manter sua hegemonia’, dispara Jambeiro.

O pesquisador baiano ainda ressalta que a relação que historicamente foi estabelecida entre o poder público e os concessionários da radiodifusão, tanto em termos políticos como no que diz respeito à regulação das atividades privadas de comunicação, não desenha cenário futuro diferente do que já existe. ‘O desequilíbrio em favor do sistema privado é tão grande que só uma transformação radical em todo o sistema brasileiro de radiodifusão tornaria possível fazer a Constituição ´pegar´, pelo menos nesse artigo’, ratifica Lalo.

Lobby pela desregulamentação

A confusão entre conceitos na Constituição e, principalmente, na execução das políticas públicas que direcionaram a configuração do sistema nacional de comunicação não explica a ausência de uma regulamentação do Artigo 223. O fato de que as duas décadas que separam a promulgação da Carta e os dias de hoje não tenham sido suficientes para que se chegasse a um denominador comum que pudesse ser consagrado em um texto complementar pode ser melhor compreendido se considerada a correlação de forças dentro dos governos e do Legislativo.

‘A não regulamentação deste e de tantos outros artigos que ainda figuram como letra morta na Constituição não se deu em função de qualquer questionamento de ordem conceitual’, acredita Bia Barbosa, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. ‘O grande problema está na falta de vontade política, que envolve também o poderio econômico e os interesses privados dos parlamentares, boa parte deles ligada direta ou indiretamente aos radiodifusores.’

Sabe-se que as necessidades dos grupos mais poderosos nunca foram impedimento para que se regulamentasse a Constituição e, até mesmo, seu texto fosse modificado. Em 20 anos, o Congresso já aprovou 55 emendas constitucionais que ‘retocaram’ a Carta Magna. No capítulo Da Comunicação Social, apenas uma emenda foi aprovada nestas duas décadas. Foi, não por acaso, um retoque patrocinado explicitamente pelas empresas de comunicação. A emenda constitucional que reformou o Artigo 222, permitindo a entrada de capital estrangeiro nas empresas de comunicação, foi rapidamente aprovada pelo Congresso e sancionada pelo Executivo em 2002. Prova de que quando é do interesse dos empresários de comunicação e dos muitos parlamentares que os defendem, a regulamentação e até mesmo a revisão de preceitos constitucionais saem do papel.

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Do Observatório do Direito à Comunicação