No primeiro capítulo da 7ª edição de seu clássico O monopólio da mídia (The New Media Monopoly; Beacon Press, 2004), o professor Ben Bagdikian, da Universidade da Califórnia (Berkeley), discorrendo sobre a concentração da propriedade no setor, afirma:
Não é necessário para uma única corporation ser proprietária de tudo para ter poder de monopólio. Nem é necessário evitar certos tipos de competição. Tecnicamente, as empresas dominantes de mídia são oligopólios – a regra de uns poucos na qual qualquer um desses poucos, agindo isoladamente, pode alterar as condições de mercado (…). Mas quando se trata do interesse do seu cartel (…) eles falam com uma só voz (págs. 4-5).
E continua:
As poucas escolhas que os grupos dominantes oferecem ao país não são o resultado de uma conspiração. Os membros dos grupos dominantes de mídia não sentam ao redor de uma mesa alocando participação no mercado, preços e produtos (…). Eles não precisam fazer isso. Eles já compartilham os mesmos métodos e objetivos (pág. 7).
Embora o professor Bagdikian estivesse se referindo aos Estados Unidos, suas observações se aplicam perfeitamente às atuais circunstâncias brasileiras.
Quem leu os principais jornais do país na quinta-feira (23/3), sabe a que estou me referindo. Lá estava um ‘Comunicado’ de página inteira, assinado por nada menos que o Grupo Band, a TV Cultura, a Rede Globo, a Rede Record, a Rede TV!, a Rede Vida, o SBT, o Canal 21, a CNT e a Rede Mulher.
Assinam o comunicado os ‘donos da mídia’ no Brasil. Aí estão os seis principais grupos da radiodifusão privada que, através de seus 138 afiliados, controlam 668 veículos, entre jornais, emissoras de rádio e de TV (cf. Epcom, 2002). A eles se somaram ainda a Rede Vida – ligada à igreja católica, e, estranhamente, a TV Cultura – a televisão estatal/pública do estado de São Paulo.
Há apenas 16 meses (em novembro de 2004), no entanto, quatro desses grupos – Band, Rede Record, SBT e Rede TV! – publicaram outro comunicado, nos mesmos principais jornais, sob o título de ‘Fato relevante’ informando à sociedade e aos poderes públicos (sic) a fundação da Abra – Associação Brasileira de Radiodifusão – e o seu conseqüente desligamento da Abert – Associação Brasileira de Emissoras de Radiodifusão, até então soberana representante dos interesses dos radiodifusores privados brasileiros (ver ‘Abra vs. Abert: Interesse público e o racha das entidades‘,).
Quais poderosos interesses teriam unido de novo, e publicamente, os radiodifusores privados (e ainda a TV Cultura)?
Transmissão simultânea
O comunicado retoma o argumento que foi usado na Comissão Geral sobre TV Digital realizada na Câmara dos Deputados em 8 de fevereiro passado, e que também serve de mote para uma campanha publicitária que está sendo veiculada nas emissoras de TV e na imprensa: ‘TV aberta. 100% Brasil. 100% grátis’ (ver ‘TV Digital: Uma oportunidade que não pode ser desperdiçada‘,).
Ao lado do argumento pela TV Digital ‘livre e gratuita’ aparece a defesa explícita do modelo japonês – ‘o sistema ISDB-T desenvolvido no Japão, com os aperfeiçoamentos criados pelos cientistas nacionais, é o único sistema que garantirá, gratuitamente, a todos os brasileiros os benefícios da televisão digital‘ – e da necessidade de que uma decisão seja imediatamente tomada pelo governo brasileiro – ‘temos certeza de que o Governo Brasileiro tomará sua decisão com a urgência que o assunto exige em benefício da sociedade brasileira‘.
O que não está explicito no comunicado é a ameaça, para os radiodifusores, da concorrência das operadoras de telefonia. Com o padrão japonês não haverá alteração no modelo de negócios e as emissoras de TV poderão transmitir para celulares diretamente sem que seu sinal passe por operadoras de telefonia móvel.
Já o modelo europeu – embora também permita transmissão simultânea em alta definição e para celulares – favorece as operadoras de telefonia, que poderiam usar parte dos canais de UHF e VHF para transmitir conteúdo. Além disso, na Europa, os canais analógicos foram divididos em quatro novos canais.
Métodos semelhantes
Se o modelo europeu for o escolhido, haverá a possibilidade concreta da perda do controle da radiodifusão privada pelos atuais grupos hegemônicos. E haverá também a possibilidade que se dê um importante passo no sentido da democratização das comunicações, multiplicando os atuais canais cujo controle hoje se concentra nas mãos de pouquíssimos grupos.
É exatamente para lutar contra essas possibilidades que os radiodifusores privados se uniram novamente. O comunicado que divulgaram na quinta (23/3), na verdade, nos oferece uma pálida idéia da grandeza dos interesses em disputa e do calibre das pressões que estão sendo exercidas pelos/sobre os atores que participam do jogo que definirá o modelo de TV Digital a ser adotado no Brasil.
Tem, portanto, razão o professor Bagdikian. Embora divergindo e competindo entre si, quando se trata do interesse do seu cartel (as empresas dominantes de mídia) falam com uma só voz. E não precisam sequer conspirar. Elas já compartilham os mesmos métodos e objetivos.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)