Aquele ditado gaúcho, um boi para não entrar na briga e uma boiada para não sair dela, realmente faz sentido nesse momento em que o entrevero em torno da invasão do mercado dos RPs por jornalistas diplomados já soma mais de uma dúzia de artigos e centenas de comentários postados em vários portais acessados pelas duas categorias profissionais. É hora, desculpem a analogia igualmente pampeana, de dar nome aos bois… E tocar – mais uma vez me cabe a ingrata missão jornalística de informar os colegas sobre esse não desprezível detalhe – numa palavrinha evitada por todos que se põem a prosear sobre o assunto: multas.
É que descobri que, como os conselhos profissionais são considerados autarquias, as penalidades financeiras aplicadas pelos RPs a empresas de jornalistas que fazem assessoria de imprensa caem automaticamente na dívida ativa da União. O que significa que quem não pagar imediatamente corre o risco de ter suas contas bancárias bloqueadas, seus bens confiscados, de perder o direito ao crédito ou de assinar contratos com quaisquer órgãos da administração pública. Enfim, fica incapacitado financeiramente. A Lei 6.830/80 determina, simplesmente, que o nome do jornalista multado passe a constar do cadastro de inadimplentes da União.
Mas tem mais. Além dos sindicatos de jornalistas pelegos, controlados por chapas-brancas, e as faculdades picaretas que introduzem cadeiras de assessoria de imprensa, comunicação empresarial ou ‘jornalismo corporativo’, outro eufemismo para mascarar atribuições que são legalmente, aqui como no resto do mundo democrático, atribuições dos relações-públicas, um outro tipo de empresa se beneficia financeiramente dessa confusão implantada no mercado. As editoras já descobriram esse filão e lançam um livro após outro ‘ensinando’ diplomados em Jornalismo, na maioria despreparados para essa função, a assumir o papel dos relações-públicas.
Acadêmicos assinam essas obras, dando aval e incentivando essa formidável confusão antiética e imoral. Duas palavrinhas que esses mestres consideram uma cretinice avocar quando se toca no assunto, como se os códigos de ética das instituições de jornalistas de Portugal, França, Espanha, Estados Unidos, Itália e muitos outros países não proibissem expressamente seus filiados de fazer assessoria de imprensa. Considero-me, portanto, tão cretino como todos os colegas estrangeiros ao abordar, mais uma vez, esse aspecto da questão.
Substituição de mão-de-obra
Como a maioria das escolas de Jornalismo ainda não maculou seus currículos com cadeiras de assessoria de imprensa, a grande maioria dos 20 mil jornalistas que atuam em assessorias, universidades ou como frilas não estão tecnicamente habilitados, já que do ponto de vista legal essa habilitação não existe, para trabalhar em assessoria de imprensa. Esses profissionais, que já pagaram altas mensalidades para conseguir o diploma e contribuem religiosamente com os sindicatos de jornalistas para serem considerados como tais, viram alvos fáceis de editoras que lançam obras produzidas para introduzi-los, ainda que superficialmente, nos complexos mecanismos de apoio a clientes que pagam para ter uma boa imagem perante a opinião pública. Esse mesmo número de profissionais, segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), ocupa cargos em redações de rádio, TV, revistas, jornais e internet, considerando seus dados de 2004, quanto havia cerca de 40 mil profissionais atuantes no país.
O que estranho é que, como a Fenaj registra o fechamento de pelo menos 10 mil vagas na grande imprensa desde o início dos anos 90, fato que relaciono ao crescimento da enxurrada de releases que chegam às redações diariamente, permitindo o corte sumário de jornalistas experientes e o enxugamento dos quadros – quando três ou quatro profissionais competentes são substituídos por um que se limita a dar uma ligeira copidescada no material que recebe das assessorias de imprensa –, a entidade fecha os olhos para essa evidente relação de causa e efeito.
A utilização de jornalistas pelas empresas de AI fez com que os releases, material em tese destinado a informar jornalistas sobre atividades de seus clientes que possam gerar reportagens, passassem a ocupar o lugar de matérias feitas e acabadas pelas redações. Essa extrapolação do papel dos relações-públicas é justificada como necessidade de melhor preparo da informação na sua origem, na fonte. Na verdade, o objetivo principal é o de claramente substituir a mão-de-obra jornalística, oferecendo material em tudo semelhante a uma reportagem, embora traga apenas o ponto de vista de uma fonte, para que possa ser publicado praticamente na íntegra. Que, na verdade, é o que acaba acontecendo hoje em muitos veículos, onde jornalistas safados chegam a assinar releases como se fossem matérias suas.
Suspensão de registro
Sem essa concorrência desleal, que permite que um número reduzido de jornalistas permaneça nas redações, geralmente aqueles que se submetem aos baixos salários e aceitam trabalhar com equipes que numericamente jamais dariam conta do recado se não apelassem para os releases, não teriam sido fechadas 10 mil vagas na última década. Pelo contrário, acredito piamente que com a abertura democrática e o acirramento da concorrência entre os veículos, 10 mil novas teriam sido abertas e o fluxo de informações de qualidade seria muito maior do que acontece atualmente. Mais casos de corrupção e desmandos administrativos, com certeza, teriam merecido manchetes muito antes – e pelas mãos de jornalistas, e não por denúncias de políticos ou seus parentes – o que não interessa aos governantes. Foi com esse intuito, com certeza, que o presidente Lula da Silva preferiu se aliar à Fenaj para propor um Conselho Federal de Jornalismo que acrescentasse assessoria de imprensa como função jornalística. Felizmente, com o peleguismo exposto em suas intenções vis, o projeto foi sumariamente arquivado, sem sequer chegar ao plenário.
Mas voltando à vaca fria (eitcha! cultura gaúcha, barbaridade!), os principais responsáveis por essa invasão de mercado, os grandes teóricos defensores de que jornalistas são os profissionais mais capacitados para fazer assessoria de imprensa, conceito amplamente difundido pela categoria, não são muitos. Sem qualquer consideração pela ordem, começaria por Chico Sant’Anna, ex-presidente da Fenaj que acaba de lançar o livro com o gracioso título de Mídia das fontes – O difusor do jornalismo corporativo, fruto do doutorado que faz na França, onde ‘jornalismo corporativo’ é claramente identificado como comunicação empresarial, ou seja, área dos relações-públicas, e não dos jornalistas franceses. A editora é a Casa das Musas, mais uma a explorar esse promissor mercado de 20 mil almas carentes de alguma informação para assumir tarefas para as quais não foram preparadas nos bancos acadêmicos.
Carlos Chaparro, professor da Universidade de São Paulo e colunista do Comunique-se, também deve entrar na lista pela defesa intransigente que faz da mesma tese, a elaboração da notícia na fonte exigindo a presença de jornalistas em assessorias de imprensa, em seus artigos e palestras. Português de nascimento, ‘brasileiro por opção’, ele é autor do livro Sotaques d’aquém e d’além-mar, onde propõe que ‘talvez um intercâmbio responsável entre o jornalismo brasileiro e português pudesse ensinar a elaborar aperfeiçoamentos recíprocos’. Só que em Portugal qualquer jornalista que vá trabalhar em assessoria de imprensa deve passar antes no sindicato e suspender seu registro, devolvendo sua carteirinha de imprensa.
O dedo na ferida
Gaudêncio Torquato, jornalista e professor titular da ECA/USP, também muito contribuiu para essa confusão no mercado com seus ensinamentos, artigos e, principalmente, por seus livros, como Comunicação empresarial – Conceitos, estratégias, sistemas, estrutura, planejamento e técnicas ou Cultura, poder, comunicação e imagem. Numa palestra proferida em 1997, na Aberje, intitulada ‘A evolução de uma ferramenta estratégica’, ele chegou a afirmar que
(…) para quem trabalhava na área da comunicação empresarial, o setor corporativo se assemelhava a territórios da indecência, aéticos por excelência e dados à corrupção e ao poder de cooptação. Um inferno, por assim dizer. Ser assessor da imprensa, na época, era algo como ter estampado na testa o selo ‘vendido ao capitalismo internacional’. Foi nesse contexto que tivemos a ousadia de enfrentar o que hoje chamo de ‘paredão da moralidade’, que, na verdade, nada mais era do que um conjunto de preconceitos contra o capital.
O que Torquato esquece de ensinar é que em todas as democracias avançadas, regimes capitalistas por excelência, o mesmo preconceito ainda prevalece, já que a proibição de que jornalistas trabalhem em assessoria de imprensa decorre justamente da necessidade de preservar o equilíbrio democrático entre o poder econômico e a sociedade em geral. O jornalismo, nesses países, é considerado o último baluarte daqueles que o Estado pretere em favor dos sempre privilegiados capitalistas. É aquele que inibe a corrupção, denuncia os subornos, os mensalões, os desvios de recursos públicos para mãos privadas, fatos, em suma, que seus clientes, sejam eles políticos governantes ou empresários privados, jamais pagam para ver publicados.
Wilson da Costa Bueno também não poderia deixar de constar dessa relação embora, em seu último livro, Comunicação empresarial no Brasil: Uma leitura crítica, coloque o dedo na ferida ao falar da total ausência da democracia nas comunicações internas e o caráter cínico das comunicações externas das empresas. Mas, é claro, defende a promíscua participação dos jornalistas nas AIs, transferindo a eles a responsabilidade de serem mais éticos e forçarem seus clientes a adotarem um comportamento moral e honesto. Ou seja, Adilson Laranjeira, que continua se apresentando como jornalista embora não exerça a profissão há décadas, deveria ter convencido Paulo Maluf a divulgar suas movimentações financeiras no exterior antes de ir parar na cadeia.
Opção pelo retrocesso
Como tem gaúcho para tudo e não quero ser acusado de regionalismo, incluo na relação dos responsáveis por essa balbúrdia o jornalista conterrâneo Jaurês Palma, autor de Jornalismo empresarial, onde defende a invasão do mercado dos relações-públicas como uma conseqüência do crescimento do desemprego entre os jornalistas. Mas admite que a categoria não está preparada para ocupar esse papel, deficiência que procura sanar com seus ‘ensinamentos’.
Os futuros jornalistas são preparados para lidar com códigos de produção e difusão estritos de jornais diários e meios eletrônicos de massa… mas os cursos não estão aparelhados para o ensino do jornalismo institucional. Paradoxalmente, enquanto faltam centenas de empregos para as centenas de formados nos cursos de comunicação e outros tantos demitidos dos veículos de massa, há poucos profissionais aptos a exercer o jornalismo institucional.
Jornalista, escritor e professor da UFJF, mestre em Comunicação pela Umesp, doutor em Comunicação pela UFRJ e conselheiro do FNPJ, Boanerges Lopes é presença constante nessa troca de farpas em artigos acolhidos por portais voltados para a área de comunicação nesse debate virtual em torno do conflito entre jornalismo e assessoria de imprensa. Em artigo recente no Observatório da Imprensa (‘A realidade se faz a cada momento‘) ele usa o velho argumento de que se não existe liberdade de imprensa nas redações, que diferença faz que o jornalista, no papel de AI, se submeta à pressão do seu cliente e publique apenas o que o patrão exige.
E para aqueles que acreditam que ‘assessor de imprensa não é jornalista porque não tem a autonomia necessária para praticar o jornalismo’, ‘tem mesmo que ‘abrir as pernas’ quando o seu contratante faz a exigência’, ou ‘na empresa de comunicação há um mínimo de parceria entre o jornalista e o dono, pois ambos têm o interesse comum que é o leitor ou espectador’, cabe uma simples pergunta: será que existe autonomia necessária para se praticar jornalismo em algum canto do mundo? Não é muito difícil responder diante dos conglomerados dominados pelas poucas famílias e pelo patronato que as comanda no país e no mundo.
Ou seja, enquanto no mundo democrático se luta para impedir o crescimento dos conglomerados e garantir a livre expressão, em vez de reivindicar que no Brasil se adote a mesma legislação que existe, por exemplo, nos Estados Unidos, para conter abusos nessa área, Boanerges pretende que se mude a lei brasileira para permitir que jornalistas trabalhem como assessores de imprensa. Opta, claramente, pelo retrocesso, procurando nivelar por baixo, quando o caminho claro apontado pelas democracias mais avançadas é justamente o de defesa da democratização da informação.
Na esparrela
Mas a lista, que jamais será completa, tantos são os que investem nessa anomalia vigente no mercado brasileiro de comunicações, não poderia ignorar o papel de uma relações-públicas nesse processo. Casada com um jornalista que trabalha com assessoria de imprensa, professora de pós-graduação da ECA/USP, eterna defensora de uma maior integração entre relações-públicas, marketeiros e jornalistas na comunicação empresarial, defende que não há diferença entre as pessoas formadas em Jornalismo ou Relações Públicas. Autora de Obtendo resultados com relações públicas e planejamento estratégico e excelência de comunicação, sua proposta de integração representa, ao fim e ao cabo, a entrega de todas as decisões à área de marketing das empresas, que é quem controla as verbas.
Embora a USP abrigue um forte núcleo de defensores da invasão do mercado de relações-públicas por jornalistas, a cadeira de assessoria de imprensa ainda não foi introduzida na ECA devido à resistência de um pequeno grupo de professores fiéis aos princípios básicos da nossa profissão. Mas nos textos apresentados do portal da universidade sobre os vários cursos ofertados aos candidatos a uma vaga no vestibular, consta, no de Jornalismo, que um dos mercados que se abre para esses profissionais é o de assessoria de imprensa. Uma fictícia atração a mais para os incautos que caem nesse golpe para descobrirem, depois de formados, que podem ser multados pelos conselhos dos RPs se trabalharem como AIs.
Felizmente, nem todos os cursos de Jornalismo incluíram a cadeira de assessoria de imprensa em suas grades curriculares. No meu Rio Grande do Sul, apenas a Unisinos mantém essa disciplina esdrúxula em sua grade. A resistência de professores e alunos é muito grande na maioria das instituições de ensino de jornalismo, principalmente nas públicas. A Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, é uma das poucas e tristes exceções. Ainda vá lá que a Universidade Federal de Alagoas, com três disciplinas, uma delas obrigatória, Gestão em Comunicação, e duas eletivas, Empreendimentos em comunicação e técnicas de comunicação institucional, tenha caído nessa esparrela.
Acinte à ética
Se os acadêmicos aqui citados deram respaldo teórico à invasão do mercado dos RPs, a responsabilidade maior, entretanto, cabe ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que traindo os compromissos eleitorais assumidos por seu partido, tentou promover um retrocesso no meio jornalístico ao apresentar o projeto do CFJ, que incluía assessoria de imprensa entre nossas atividades profissionais. Uma excrescência que felizmente caiu por terra. Mas o governo continua promovendo a maciça contratação de jornalistas para cargos de assessoria de imprensa que deveriam ser ocupados por RPs, numa evidente intervenção estatal no mercado jornalístico que compromete a liberdade de expressão e conspurca o exercício da democracia plena.
Se as entidades de classe, dominadas pelos prepostos do governo, em sua maioria assessores de imprensa de todos os níveis da administração pública, lutassem pela defesa dos jornalistas de redações, a parcela sempre esquecida e menosprezada da categoria, a outra metade certamente encontraria trabalho na área do jornalismo. Impedir as demissões injustificadas, instituir comitês de redação que controlem a carga horária e a qualidade do material publicado, com certeza promoveriam a rápida restituição das milhares de vagas que foram suprimidas nos últimos 15 anos. Com um jornalismo competitivo, independente da pressão do noticiário dirigido enviado pelas fontes – sendo o governo a principal delas – o mercado de trabalho dos jornalistas absorveria os profissionais diplomados sem que os mesmos necessitassem recorrer a empregos públicos ou privados como assessores de imprensa.
O avanço da democracia brasileira, eu diria mais, o desenvolvimento econômico e social do Brasil, depende dessa correção imediata e radical dessa excrescência que vigora no mercado de comunicações no país. A concentração de renda, a corrupção, os desmandos administrativos e os desvios de recursos, problemas que entravam o crescimento do país, só poderão ser superados com a atuação rigorosa e constante de jornalistas vocacionados para a divulgação da verdade, para a prestação de um serviço de interesse da sociedade. Comunicação social não tem nada a ver com comunicação empresarial, ‘jornalismo corporativo’ é um acinte à ética que prevalece na prática do jornalismo nas democracias avançadas. Sem entendimento claro desses conceitos, continuaremos chafurdando nesse mar de lama, mergulhados em crises que se sucedem sem solução, às custas da miséria e da fome do nosso povo.
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Nota do OI: Às 17h38 de 27/10/05 foi retirada uma frase deste artigo, por veicular conteúdo ofensivo, e modificada uma outra, por conter erro factual. A ofensa passou involuntariamente, e por ela o Observatório pede desculpas. E este registro é feito apenas para constar que este erro existiu. (Luiz Egypto)
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Jornalista