Durante mais de meio século, os jornalistas brasileiros foram contrários à criação de uma representação corporativa na forma de Conselho Federal ou Ordem. Uma das principais razões desta postura é o fato de que os conselhos regionais e federais representativos dos profissionais são classificados legalmente como autarquias. Ou seja, órgãos estatais vinculados ao governo.
Até o final da ditadura militar, o principal inconveniente era ter um órgão organizando as lutas classistas sob a tutela dos generais. Independência e autonomia diante do Estado eram as principais bandeiras dos sindicatos dos jornalistas brasileiros, que chegaram a abortar, durante o governo do general João Figueiredo, o envio ao Congresso Nacional de um projeto de lei criando o Conselho Federal dos Jornalistas (CFJ). Na ocasião, a Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj, lutava por eleições diretas para o país e para ela mesma.
Os anos passaram, um novo milênio surgiu e a Fenaj luta agora pela criação do CFJ – Conselho Federal de Jornalismo. O carimbo que selou a mudança de postura da Fenaj foi fixado num Congresso extraordinário realizado em Vitória (ES). Este Congresso foi convocado especialmente para debater dois temas: a regulamentação do estágio e a criação ou não de um Conselho.
O principal argumento dos que defendiam a criação do Conselho era dotar a categoria de poderes para fiscalizar o mercado e evitar a atuação dos chamados irregulares, aqueles que não têm registro profissional. Todos queixavam que as Delegacias Regionais do Trabalho eram pouco eficientes na concessão de registros, permitindo fraudes, e inoperantes na fiscalização do exercício irregular da profissão, bem como dos abusos patronais, do tipo excesso de jornada de trabalho, não pagamentos de adicionais etc.
Os contrários ao Conselho mantiveram a posição, justificando que um projeto de lei, então em tramitação no Congresso Nacional, transferiria o poder de conceder registros para a Fenaj e os sindicatos. Decidiu-se então lutar pela aprovação do projeto, o que ocorreu, mas ninguém contava com o veto integral do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Charlatanismo jornalístico
O veto, que até hoje não foi apreciado pelo Congresso – também não foi alvo de mobilizações dos sindicatos e da Fenaj –, foi a centelha para acender a chama dos que defendiam o Conselho. Técnicos e juristas foram arregimentados e um projeto foi submetido à aprovação em um novo congresso da categoria, desta vez em Manaus, em 2002. Para surpresa minha, e de muitos que lá estiveram, o texto do projeto de lei que cria os conselhos Federal e Regional não contemplava a principal razão da reivindicação da categoria: o poder de fiscalizar o mercado e punir os infratores.
O tema foi suscitado por mim na plenária do congresso em Manaus e os integrantes da comissão que elaboraram o texto alegaram que, por questões estratégicas, havia se decidido deixar isso de lado para tornar a aprovação pelo Congresso Nacional mais fácil. Alegavam que os donos dos meios de comunicação iriam pressionar deputados e senadores a não conceder tal poder a um organismo laboral. A justificativa não foi aceita pelos delegados presentes ao congresso dos jornalistas e a comissão se viu obrigada a reformular o anteprojeto, introduzindo os poderes e as competências reivindicadas.
Em finais do ano passado, a Fenaj convocou em Florianópolis uma reunião do Conselho dos Representantes – um órgão deliberativo na estrutura da entidade, mas que possui poderes inferiores ao dos Congressos. Nesta reunião, novamente o texto do anteprojeto foi reformulado, retirando-se a competência do Conselho Federal de Jornalistas fiscalizar o exercício profissional. A nova versão, que deve ser a enviada pelo Ministério do Trabalho ao Congresso Nacional, (publicada no portal do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (http://www.sjsp.org.br/26_02_2004%20Anteprojeto%20de%20Lei%20do%20CFJ.htm) diz, no inciso V do parágrafo 3°, que compete ao CFJ ‘supervisionar a fiscalização do exercício profissional em todo o território nacional’.
O anteprojeto não define quem terá a competência de exercer a tão sonhada fiscalização do mercado de trabalho dos jornalistas.
Na verdade, caso este texto seja aprovado pelos parlamentares, no lugar de resolver os problemas do exercício profissional irá criar um limbo jurídico. O novo órgão não será competente para multar empresas e pessoas que estiverem exercendo irregularmente o jornalismo – assim como acontece com o CRM ou o CREA em relação a médicos e engenheiros –, e as Delegacias Regionais do Trabalho se virão desobrigadas de escalar seus fiscais pois, regularmente, ela não fiscaliza atividades profissionais de categorias que contam com a ação de conselhos.
Este alerta se faz necessário pelo fato de que muitos jornalistas e sindicatos estaduais de jornalistas acreditam que o CFJ irá solucionar os crônicos problemas da profissão. A mudança feita no texto retira, inclusive, os artigos que definiam os casos irregulares que exigiam a ação reparadora do Conselho Federal, bem como as penalidades.
O projeto cria um Conselho que irá supervisionar a fiscalização, feita não se sabe por quem, e para coibir não se sabe que irregularidades. Não há no texto proposto nenhuma punição para o charlatanismo jornalístico. Há, sim, penalidades para os que são legalmente jornalistas e que porventura venham a provocar alguma derrapagem moral ou profissional.
Cartório-fantasma
Na América Latina existem dois modelos clássicos de organização dos trabalhadores: os sindicatos e os conselhos. Basta uma olhadela nos países vizinhos para verificar o que tem se mostrado mais eficaz. Na Argentina não há conselhos e os sindicatos de jornalistas, como a UTPBA – União de Trabalhadores de Prensa de Buenos Aires, são fortes. Na Colômbia, Costa Rica, Equador os profissionais são representados por conselhos.
Os conselhos se mostraram ineficientes até para fixar pisos salariais ou negociar contratos coletivos de trabalho – aquilo que popularmente chamamos de dissídio, no Brasil. Em nosso país, categorias profissionais que se organizaram por meio de conselhos tiveram suas estruturas sindicais desnutridas. Esses são os casos de engenheiros, advogados, arquitetos, economistas, relações-públicas e de tantas outras.
Este é outro ponto que nós jornalistas temos que ficar atentos. No projeto de lei do Conselho não há competência para fixar tabelas de honorários profissionais, nem do piso salarial. Isto terá que ser uma luta para os sindicatos. Estes, contudo, estarão fragilizados, inclusive materialmente. Como a contribuição e a filiação aos conselhos são obrigatórios – sem o que não se pode exercer a profissão –, muitos optarão, por questões de economia doméstica, a não mais se filiarem aos sindicatos. Pagarão apenas a taxa cartorial anual compulsória, que em algumas outras profissões ultrapassa os 400 reais, anuais. Esta quantia equivale a, mais ou menos, 50% do piso salarial aplicado em 18 dos 31 sindicatos de jornalistas do país.
Este cartório sairia muito caro para os profissionais, que gradativamente deixarão de pagar suas contribuições sindicais, levando a falência uma estrutura representativa que existe há mais de 60 anos. A própria Fenaj, que conta com 5% de tudo que os sindicatos arrecadam, iria sentir em suas já frágil contabilidade. O mesmo acontecendo com as centrais sindicais e organismo como Dieese e Diap. Nestes dois últimos casos, o prejuízo novamente será dos jornalistas, que ficarão sem os estudos técnicos desses departamentos.
Dinheiro será também o desafio para os novos conselhos regionais. Até a poderosa OAB Nacional se vê obrigada a enviar uma mesada para manter em funcionamento as OAB regionais dos pequenos estados. A OAB, porém, além da contribuição dos advogados conta com taxas dos processos judiciais para reforçar seu caixa.
Sem dinheiro os Conselhos Regionais não poderão sequer contratar fiscais e técnicos. O Conrep, que representa os relações-públicas, sabe bem do que estamos falando. Mesmo estruturas mais fortes, como a dos farmacêuticos, não têm tido forças suficientes para fazer com que as farmácias brasileiras tenham farmacêuticos. E olhe que eles contam com a exigência legal e a fiscalização da vigilância sanitária.
A criação do Conselho Federal de Jornalistas deve polarizar a eleição para a nova diretoria da Fenaj, que ocorre entre 6 e 8 de julho. Alguns tentam simplificar dizendo que a Chapa 1 é defensora do Conselho e a Chapa 2, contrária. Na verdade, qualquer que seja a chapa vitoriosa, esta terá de implementar as decisões da categoria e, principalmente, as tomadas em congresso.
O tema, contudo, não é tão simples assim e merece a atenção de todos, pois da decisão tomada poderemos estar criando um cartório-fantasma e enterrando uma estrutura que, mal ou bem, vem há décadas defendendo a dignidade do jornalismo no Brasil e o direito a livre expressão.
Como diz a música de Chico Buarque, ‘quem espera nunca alcança’. Talvez, no lugar de esperar que uma nova entidade seja a panacéia de todos os males, o melhor seria fazer a hora e investir na vitalização do sindicalismo dos jornalistas brasileiros.
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Jornalista na TV Senado, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF e ex-vice-presidente da Federação Internacional dos Jornalistas – FIJ.