O tema aqui proposto já mereceu ampla abordagem nos mais diversos órgãos de comunicação, a começar pela expressiva gama de artigos publicados em edições anteriores deste Observatório. Talvez o ímpeto de não me sentir ausente do debate dite a reflexão a seguir. Por outro lado, reconheço que, sobre o tema, dada a larga margem de implicações, ainda há o que acrescentar.
Cinismo criterioso
Diante de cada oferta tecnológica, de imediato há a inclinação à lógica binária, perfilando vozes a favor e vozes contrárias. Em certo aspecto, nas duas posições tende a haver acentuado grau de ingenuidade. É sabido que a tecnologia, atrelada a densos investimentos de capital, independe da binaridade das posições. Com mais ou menos tempo, o mercado incorpora e inicia o processo de indução ao consumo, implantando o regime de ‘necessidade artificial’ para a qual tanto concorre a publicidade quanto se oferece o espaço midiático destinado a divulgar a contenda argumentativa. A partir daí, instala-se progressivamente o estado de ‘demanda real’, ou seja, a expectativa subjetiva do potencial consumidor se encarrega de alimentar o desejo, em sua origem, inautêntico. A trama, portanto, é conhecida por todos os integrantes, seja da cadeia produtiva, seja pelos agentes da mediação (mídia).
A TV digital passa pelo quadro descrito no parágrafo anterior. A necessidade artificial opera com base no que denominaremos ‘cinismo criterioso’. Em que consiste o conceito? É simples: abstrai-se da possível discussão se tal nova oferta (agora, a imagem digital; outrora, celular, CD, DVD etc.) é necessária ou não. A supressão do quesito ‘necessidade’ é substituída pela ‘análise’ das disponibilidades tecnológicas oriundas de companhias concorrentes. No caso em questão, o debate passa a centrar-se na escolha entre três modelos: ATC (norte-americano), DVB (europeu) e ISDB (japonês).
Em pronunciamento oficial, o senador Hélio Costa, ministro das Comunicações, manifestou preferência pelo modelo japonês. Para justificar a escolha, o ministro se valeu exatamente do critério ‘necessidade’, ao declarar que ‘dos três modelos concorrentes, o japonês é o que melhor atende às necessidades do usuário brasileiro’. Pura falácia. A sociedade brasileira, segundo consta, não solicitou tevê digital e tampouco declinou qual seria sua necessidade.
Com o intuito de melhor explicitar a orientação pela escolha, o ministro ainda arrematou: ‘o modelo japonês permite transmissões de imagens por celulares’. No tocante às desvantagens e o leque de interesses em jogo, remeto o leitor à excelente matéria de Ana Paula Sousa (‘Monopólio em xeque’), publicada na revista CartaCapital (edição 380, de 15/2/2006). Mais ainda esclarecedora é a entrevista de Viviane Reding, ministra da Sociedade da Informação e Mídia da União Européia, concedida à jornalista Ana Paula Sousa e publicada, com o título ‘Guerra de informação’, pela revista Carta Capital (edição 381, de22/2/2006).
A propósito, é lamentável que os jornais de grande circulação no país estejam conferindo ao tema tratamento superficial. Alguns trechos da citada entrevista bem ilustram o conflito travado nos bastidores responsáveis pela escolha do padrão para o Brasil:
‘(…) Existe de fato desinformação a respeito do tema, muitas vezes com o objetivo de tentar justificar opções que teriam pouca lógica [grifo nosso] se analisados todos os elementos de forma objetiva /…/’.
‘(…) É difícil ver como um padrão que já foi adotado por 56 países e implementado e testado em condições muito diferenciadas não possa ser robusto (que ofereça boa qualidade de recepção). Não haveria mais razão para se duvidar da robustez de um sistema (o japonês) que até agora foi implementado apenas em duas cidades de um único país?’.
A respeito do padrão DVB, em oposição ao sistema ISDB, este da preferência do ministro Hélio Costa, Viviane Reding, com olhar suspeito, declara:
‘(…) Uma vantagem do padrão DVB é, precisamente, que poderá transmitir conteúdo para qualquer dispositivo equipado para esse efeito, incluindo celulares [grifo nosso]. Esses serviços abrirão novas oportunidades de negócios, tanto para emissoras de tevê quanto para operadoras de telefonia móvel, com novas receitas que irão muito além das geradas pela publicidade’.
Afora as observações que, em si, já preocupam em função das prioridades que, no âmbito brasileiro, estão sendo definidas quanto a seus desdobramentos, cabe assinalar que a escolha do padrão DVB acentuará a condição de país cada vez mais refém do imaginário publicitário, fantasioso e, portanto, mais propenso a viver atmosferas de irrealidade, fazendo da sublimação ante a recusa ao amadurecimento o suporte emocional com que intensifica sua destinação histórica atrelada a um certo comportamento infantilizado. Resta ainda juntar aos demais depoimentos o que segue:
‘(…) O Brasil corre o risco de escolher um padrão minoritário, não só em todo o mundo, mas mesmo na América do Sul. Isso implicaria uma redução das possibilidades de trocas culturais com países e regiões que escolheram o DVB e com os quais o Brasil tem mais afinidades culturais /…/’.
Para não incorrer em contínuas reproduções, optarei por tratar da questão noutra direção.
Fascínio pela imagem
É fato irrefutável que, nas últimas décadas, o brasileiro, majoritariamente, fez a opção cultural pelo consumo de imagens. Igualmente se mostra sensível à sedução pelas novidades tecnológicas. Os dois fatores associados dão a garantia de próspero mercado para a oferta dos produtos que a safra tecnológica, de tempo em tempo, põe à disposição. É com base nessa constatação que o ministro constrói o dado da ‘necessidade’, independentemente de a sociedade ser consultada.
O fascínio declarado pela imagem, crescente a cada nova geração, serve de álibi para multiplicar a espiral de ofertas e demandas. É sabido que nada é melhor para a preguiça intelectual do que plantar o olhar diante de telas eletrônicas. Elas deixam a prazerosa sensação de tudo revelarem. Assim, a promessa de, no horizonte próximo, chegar ao Brasil a ‘imagem digitalizada’, além da possibilidade de ampliar quatro vezes a oferta de canais, aguça a expectativa acrítica do futuro usuário que é reforçada pela possibilidade de consumir transmissões de tevê inclusive por celulares, objeto divinizado por 40 milhões de brasileiros. Enfim, tem-se um quadro de tentação irresistível para o infinito apetite dos ‘devoradores de imagens’.
A questão que efetivamente seria meritória de análise diz respeito à qualidade dos conteúdos e às possibilidades de intercâmbio cultural. Este dado, porém, parece não ter lugar no arco dos debates nacionais. É bom destacar que o próprio ministro da Cultura, Gilberto Gil, referendado pelos ministros Luiz Fernando Fourlan e Dilma Roussef, considera que a escolha requer análises mais aprofundadas e, conforme menciona a reportagem ‘Monopólio em xeque’, ‘o adiamento é positivo’. Igual pensamento tem o deputado Walter Pinheiro (PT-BA), servidor da Telebrás durante 28 anos, que, na mesma fonte, afirma: ‘na verdade os três modelos seriam viáveis’.
Dois fatos decorrentes da opção pelo padrão japonês são gravíssimos para os que se preocupam com o nível cultural da população: 1) o isolamento do Brasil em relação a outras matrizes culturais; 2) indução ao incremento pelo consumo de imagens, inibindo cada vez mais a cultura livresca.
No tocante ao primeiro fator, o Brasil, no passado, já colheu infortúnios quando escolheu, para o videocassete, o padrão tecnológico que nos subordinou a produtos norte-americanos. Somente mais tarde, surgiram aparelhos com conversão. Para a cultura cinematográfica, a escolha foi a pior possível. O resultado é que, atualmente, apesar de existirem opções tecnológicas, inclusive o DVD, é patente a preferência por filmes norte-americanos, sem mencionar como procedem as redes de televisão aberta. Para estas, o cinema europeu e a filmografia latino-americana representam zero à esquerda.
Para o segundo fator, o estrago não é menor. É perceptível, principalmente no segmento jovem, o uso abusivo de celulares, tanto para chamadas telefônicas quanto para música e jogos. Com tal hábito, o jovem brasileiro, em todos os segmentos sociais, consome vastas fatias de tempo com inutilidades, enquanto páginas densas de formação cultural ficam encostadas em qualquer canto empoeirado. Já não bastam as horas que o jovem brasileiro entrega a telas (TVe internet)? É exatamente na direção desse sintoma da incultura que vai a preferência do nobre ministro.
A predominar a vontade do ministério das Comunicações, podemos esperar por um futuro próximo com redobrada deficiência cultural e intelectual. A gravidade da questão impõe estado de alerta, antes que algum ingênuo apareça para afirmar coisas do tipo ‘celular também é cultura’.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)