Quanto mais avançam os debates sobre o padrão tecnológico a ser adotado no Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), mais aparecem os detalhes que farão a diferença quando os serviços estiverem funcionando. Um deles é o tratamento que será dado aos conteúdos digitais e os direitos sobre eles – situação em que a tecnologia é tão decisiva quanto a legislação. Os padrões em disputa no Brasil carregam características que podem definir os desdobramentos sociais e culturais da escolha em curso.
Ao definir o padrão tecnológico da TV digital para o Brasil, o governo vai estar condicionando o tratamento que dará às questões relativas à proteção e distribuição de conteúdo neste novo ambiente. Isto porque as tecnologias que existem, atualmente, carregam em si duas soluções para esta questão. Segundo o vice-presidente de operações da América Latina da Motion Picture Association (MPA, associação que representa os estúdios de cinema norte-americanos), Steve Solot, as medidas de proteção apresentadas pelos atuais sistemas de gerenciamento de direitos digitais são a o bloqueio da gravação ou redistribuição do conteúdo na emissão ou em sua recepção. Em palestra durante audiência pública no Conselho de Comunicação Social, realizada dia 5/6, em Brasília, o executivo explicou que a proteção na fonte é a solução adotada pelo padrão japonês (ISDB), e implica na codificação dos sinais, que deixam de ter transmissão aberta. É, portanto, um padrão fechado, no qual todas as emissoras deverão usar a mesma codificação. Exige que os telespectadores possuam equipamentos capazes de decodificar o sinal para poder recebê-lo, o que implicará, obrigatoriamente, na troca dos atuais aparelhos. Nenhum conteúdo poderá ser copiado, nem mesmo na memória do próprio televisor, nem em uma simples fita VHS, pois todos os programas estarão protegidos pelo chamado Copy-Never.
O sistema de gerenciamento do conteúdo na recepção (adotado pela União Européia e que está em vias de adoção nos Estados Unidos, segundo Solot) tem o sinal aberto para ser recebido. Entretanto, o conteúdo digital pode ser criptografado (código que marca a restrição do conteúdo) para ser bloqueado para cópia nos casos em que a emissora ou o proprietário desejarem. Um programa criptografado será reconhecido pelo aparelho receptor (televisão, computador ou caixa decodificadora), que conterá programas capazes de controlar a reprodução ou redistribuição daquele conteúdo digital específico. ‘Esta é uma solução de baixo custo e que permite que o aparelho receptor suporte outros recursos digitais avançados (segundo critério e disponibilidade financeira do usuário), como redes residenciais, gravação de vídeo digital e acesso à internet’, defende Solot. Essa característica abre a possibilidade de a televisão digital poder funcionar também como um terminal de acesso à internet, a serviços públicos e outros recursos disponíveis, até então, somente através de computador. ‘Para o governo brasileiro, que tem os programas de inclusão social entre os principais objetivos com a adoção da TV digital, esta seria a melhor alternativa’, aponta o dirigente da MPA.
Novo mercado
O conteúdo é um dos componentes essenciais no panorama da digitalização e requer nova regulação. Novos atores aparecerão e diferentes relações de negócios serão estabelecidas, prevêem especialistas da área. Às facilidades, porém, somam-se novos conflitos. Segundo Steve Solot, o conteúdo audiovisual veiculado através da TV digital aberta poderá ser facilmente copiado e redistribuído sem a autorização do proprietário da obra, e veiculado em outros meios de comunicação, se não estiver protegido adequadamente. Isso causará danos ao atual modelo de negócios da televisão aberta, baseado em receita publicitária. ‘Em países em que a TV digital já foi ou vem sendo implantada, essa possibilidade demonstrou que proprietários de conteúdo audiovisual e emissoras de televisão só disponibilizam suas obras quando existe uma proteção adequada contra a reprodução e retransmissão não autorizada, porque outra forma seria danosa, senão fatal à emissora’, revelou o executivo.
A facilidade de ‘transporte’ nos meios digitais, ao mesmo tempo em que propicia a introdução de novas obras e autores, inaugurando uma outra idéia de valor de uso, encontra na chamada ‘pirataria’ (reprodução e comércio desautorizado de produtos) uma prática que diminui potencialmente o valor dessas obras. Por outro lado, a proteção e as garantias de propriedade intelectual ou de comércio do produto cultural não conseguirão, com as novas tecnologias, sustentar o modelo atual da cadeia produtiva, à qual associam-se as grandes distribuidoras, produtoras, gravadoras, editoras e mesmo as emissoras, agregando valor arbitrário aos produtos comercializados, restringindo o acesso e mal remunerando, muitas vezes, os realizadores.
Segundo o produtor Nelson Hoineff, presidente do Instituto de Estudos de Televisão, é muito comum as negociações de conteúdo audiovisual, no Brasil, se darem em troca de mídia ou de valor irrisório. ‘As plataformas digitais trazem a urgência de começar o debate sobre conteúdo e distribuição, que já é uma necessidade antiga. Até hoje, por exemplo, as grandes produtoras de cinema norte-americanas não embarcaram completamente na exibição digital porque não se sentem protegidas’, diz Hoineff, para quem o valor atribuído ao conteúdo, no Brasil, é completamente subjetivo.
Repensar a cadeia produtiva
Para Celso Schröder, coordenador-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a idéia da livre circulação deve ser debatida entre os realizadores e a sociedade para se conseguir desverticalizar a atual cadeia de valor das comunicações, garantindo a entrada do pequeno escritor, do cineasta, do músico desconhecido, enfim, dos criadores de conteúdo que estão à margem, no ‘desequilibrado’ sistema atual. ‘Esse é um debate que tem que ser iniciado imediatamente. A criação e a produção de conteúdos requer recursos, esforço e trabalho, e isso tem que ser remunerado. É muito ingênuo, entretanto, achar que o único merecedor dessa remuneração tenha que ser o criador. A cadeia produtiva numa obra audiovisual, por exemplo, envolve muita gente trabalhando’, diz. Schröder condena tanto a prática do neoliberalismo que desregulamenta, quanto as propostas típicas de um ‘comunismo primitivo’, exterminando com a cadeia produtiva sem propor um modelo sustentável.
Com a tecnologia digital nas comunicações, portanto, essa cadeia começa a ser quebrada, e a primeira ligação que se rompe é a do agente intermediador entre a obra e o público. A idéia de propriedade sobre obra ou bem cultural ou intelectual já está mudando. O conjunto que envolve da criação à distribuição de filmes, livros, discos, e outras produções artísticas e culturais, não tem mais na figura do emissor/distribuidor o único caminho para atingir o seu mercado. O fenômeno da internet responde por isso. Se uma das conseqüências mais previsíveis da digitalização dos meios de comunicação é a convergência dos mesmos para vias que facilitam a divulgação de informações, a distribuição de conteúdos e a disseminação de idéias, e se a TV digital no Brasil surge como uma dessas vias, ela poderá representar para o país muito mais do que o maior veículo de comunicação de massa em que se transformou durante seus mais de 50 anos de existência, mas o veículo que, agregando tantas características, vai tornar possível a inclusão social. Este é um cenário que precisa ser melhor explorado.
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Jornalista, da Redação FNDC