Nos dias de ontem nasceu a Radiobrás. Era a ditadura militar. E os generais que deram o golpe queriam uma rede de emissoras que dissesse ao povo brasileiro que estavam ali para salvar o mundo dos comunistas, mas, principalmente, do próprio povo. E a empresa radicalizou no jornalismo chapa-branca.
É claro que os empresários da comunicação que apoiaram o golpe militar clonaram e reinventaram este jornalismo fuleiro, bajulador. Lembro dos idos de mil novecentos e setenta e poucos, quando o Programa Silvio Santos abria um espaço somente para bajular o general da ocasião, denominado ‘A semana do presidente’. Sobre o comportamento da Globo sugiro, entre outros, o livro recém-lançado pelo colaborador do Observatório, professor Venício A. de Lima, Mídia, crise política e poder no Brasil [veja resenha aqui].
A Radiobrás cresceu, virou gente. O governo Lula, que tanta bobagem e burrice cometeu na área da comunicação, conseguiu porém mudar algo na Radiobrás: eliminou o jornalismo chapa-branca. Sei, por colegas, como a tarefa não foi fácil. Eles me falaram da dificuldade em convencer os repórteres da desobrigação de falar bem do governo. Talvez esta tenha sido a maior conquista da Radiobrás no período. Uma conquista que foi além do petismo: sim, boa parte dos petistas instalados no governo, dentro ou fora da Radiobrás, queriam que a Radiobrás continuasse chapa-branca. Em determinadas ocasiões, poderosos instalados no palácio (e palácio é palácio, que me perdoe Niemeyer) criticaram temas e a abordagens feitas com isenção, contendo críticas ao governo. Na cabeça destes dinossauros só se podia falar bem do governo. Felizmente muitos petistas e não-petistas conseguiram segurar a onda e manter a Radiobrás como uma empresa jornalística.
A modernidade, no entanto, não tem o poder da ubiqüidade – não está em todo canto. Todo esse extraordinário avanço em fazer da Radiobrás um ente que produz informações não-oficiais não é o bastante. Hoje o jornalismo da empresa erra, e muito, ao repetir o modelo e as pautas do jornalismo das emissoras comerciais.
O novo na pauta são os movimentos sociais, as mobilizações populares. Mas o formato não mudou muito quando se observa a programação dos dois principais veículos da Radiobrás: a TV Nacional de Brasília e a Rádio Nacional FM de Brasília. E é deles que se fala daqui para frente.
Amplitude histórica
Primeiro, sobre o jornalismo praticado. Na TV e na rádio é adotado o mesmo formato de uma emissora comercial. As matérias ainda são curtas, não abordam o contexto e, pior, o modo do repórter se expressar é uma caricatura do que se vê na Globo, Band, SBT, CBN…
A primeira coisa que esses repórteres fazem é eliminar o sotaque. Parece que o sotaque incomoda o jornalismo brasileiro, parece que envergonha ter um repórter falando no sotaque baiano, ou pernambucano, ou gaúcho, ou maranhense… – eis o grande problema do Brasil hoje. O modelo adotado por todas as emissoras estabelece: sem sotaque. Ora, o sotaque é uma das marcas do Brasil, ou dos brasis reais. Eliminando o sotaque, quem assiste a um programa fica convencido de que não mora neste país. Eliminar o sotaque é excluir, alienar o povo brasileiro. Sendo franco, honesto e objetivo: esta é uma das burrices do jornalismo moderno. Sem o sotaque, como diz Ariano Suassuna, a fala é a fala de locutora de aeroporto. É algo artificial, mentiroso, e que só alimenta o preconceito contra aqueles que não falam esta tal de língua culta.
Outro aspecto negativo da fala adotada por todos é o modo de se expressar cortando as frases. Alguém deve ter bolado isso imaginando que ao cortar a frase fica melhor para o telespectador/ouvinte captar a mensagem. No entanto, é mero artificialismo. Somente contribui para esta impressão de que os repórteres (que já eliminaram o sotaque) pareçam mais ainda que são feitos de plástico. Não é preciso ser futurólogo para constatar que essa bobagem vai se acabar no dia em que um alguém mais poderoso diga: não precisa disso. E fim. Não haverá quem a defenda. Na minha opinião o modelo global estabeleceu e até hoje ninguém parou para pensar e questionar.
O que constrange é saber que a Radiobrás poderia ter um jornalismo diferente, original, criativo. E, no entanto, copia esta mesma fórmula manjada, limitada.
Na verdade, há certas coisas na TV brasileira que nos fazem pensar como alguém estuda tanto para fazer tão pouco, criar tão pouco. Por que será que todos – incluindo a Radiobrás – tratam da meteorologia do mesmo jeito: um mapa com o solzinho, nuvenzinhas, e um homem e uma mulher do tempo. Não existe um jeito diferente de tratar do tempo? Pelo menos, que seja diferente entre as emissoras? E a mulher do tempo? Por que será que todas – incluindo as da Radiobrás – adotam o mesmo figurino? É um fenômeno isto. A garota do tempo está sempre com uma blusa de manga comprida, que faz lembrar a roupa de mergulhador. Eu disse: todas as mulheres que apresentam o tempo! Este figurino único (da CNN à TV Globo) resulta de profundos estudos psicológicos ou de princípios estabelecidos pela ONU? Ou foi a Opus Dei que determinou esta clonagem universal de figurino?
Perco tempo em falar do óbvio. Mas o óbvio não se esgotou ainda.
A pauta do noticiário nacional das emissoras da Radiobrás seguem o óbvio. Caso Susane Richtofhen? O mesmo tratamento e o mesmo tempo que as emissoras comerciais deram; a mesma intenção sanguinária de colocá-la na cadeia. Nada de novo. Caso do avião da Gol? Idem. Violência no Rio de Janeiro? Ora, o que sei do Rio de Janeiro é o mesmo que sei pelas outras emissoras: troca de tiros entre a polícia e traficantes. Nenhuma matéria para avaliar a questão no seu contexto social, na sua amplitude histórica. Nada. Dos demais estados tampouco chega algo diferente. Ah não ser, claro, os movimentos sociais e as mobilizações – isto é novo.
Pensar, raciocinar
A cobertura internacional é um fiasco. Pior, serve aos interesses hegemônicos do império norte-americano. Um caso recente: Coréia do Norte experimenta bomba atômica. Qual a notícia que escuto na Rádio Nacional, no jornal do meio-dia: ‘Comunidade internacional condena teste e planeja sanções’. Eu me pergunto, quem é a ‘comunidade internacional’? Depois o repórter me apresenta: ‘O presidente dos Estados Unidos diz que a ‘comunidade internacional’ é contra’. E acrescenta mais: ‘O primeiro ministro Tony Blair diz que a ‘comunidade internacional…’. Ora, é evidente, o uso da expressão comunidade internacional por Bush e Blair tem o objetivo de legitimar junto à comunidade internacional um conceito que é básico para que adotem ações mais severas contra aqueles que consideram seus inimigos. Que Bush e Balir adotem esse vocabulário, a gente entende, afinal são assassinos poderosos; agora, a Radiobrás reproduzir isto é que é o perigo.
Não é a primeira vez que a Radiobrás erra na cobertura de conflitos internacionais. A invasão do Iraque não foi diferente. A Rádio Nacional e a TV Nacional de Brasília repetiram o tratamento dado pelas demais emissoras. No jornalismo, pelo menos. Bush e Blair, parceiros de um crime que hoje chega a mais de 600 mil mortos no Iraque, mentiram para o mundo, e os jornalistas se encarregaram de reproduzir a mentira. A Radiobrás fez o óbvio: falou o que todos os outros falaram. Portanto, se tornou – também – porta-voz de um assassino.
No caso do Iraque ou da Coréia do Norte, se estamos falando de jornalismo, ao invés de reproduzir as mentiras de Bush, ou de Blair, o jornalismo da Radiobrás poderia dizer: não temos informações sobre o outro lado, não temos a opinião dos dirigentes da Coréia, por isso pedimos desculpas aos cidadãos brasileiros por fazer este jornalismo de uma banda só, apresentando somente um lado, o dos Estados Unidos.
Essas intervenções norte-americanas poderiam ser aproveitadas para mostrar a verdade dos fatos. Eu disse: a verdade dos fatos. E não apenas o fato pela metade, e segundo uma ótica norte-americana. Mesmo que o Brasil se alie aos norte-americanos na crítica à Coréia do Norte, é preciso destacar o que é o fato. O fato não é somente o teste de uma bomba. O fato é: o que levou à Coréia a testar uma bomba? Qual o seu interesse? Quem é contra? Por que é contra? Por que os EUA são contra os testes mas mantém, produz e usa artefatos nucleares? Por que se é contra a bomba atômica?
Nenhuma dessas perguntas teve resposta. Não cabe num noticiário? Ora, que se mude o formato do noticiário. Ou que se cole ao noticiário informes mais amplos sobre determinados temas. Existem várias alternativas. A pior é não apresentar nenhuma. O que não se pode é mentir para o ouvinte/telespectador apresentando meio fato, meia verdade, como se fosse verdade. O bom jornalismo não se preocupa com consensos. O bom jornalismo provoca. Por exemplo, os EUA querem todo mundo desarmado, mas é o maior produtor e vendedor de armas do mundo; os EUA mantêm mais de 5 mil armas nucleares de longo alcance, mas quer todo mundo desarmado; a Rússia tem igual número de armas de longo alcance; a Inglaterra tem 200 ogivas de longo alcance… O que o ouvinte/telespectador acha disso? Deixe que ele pense, raciocine. Não há problema ter um ouvinte ou telespectador pensando. Que cada um decida sobre quem é santo ou demônio.
Cobertura de isopor
O noticiário internacional dessas duas emissoras erra por reproduzir o noticiário das agências internacionais – o do pensamento único, hegemônico, sob domínio norte-americano. E não questiona esta tentativa de domínio do planeta. Por que a Radiobrás, quando da invasão do Afeganistão, ou do Iraque, ou, no caso do Líbano, não disse que os Estados Unidos mantêm bases militares em todos os continentes, com mais de 130 mil soldados. Por que não questionam a existência da prisão ilegal e imoral de Guantânamo, vergonha para os direitos humanos? Por que não questionam a aprovação nos Estados Unidos de lei que cria os tribunais de exceção – isto é, o direito dos EUA seqüestrarem, torturarem e matarem quem lhes aprouver? Por que não questionam a recente decisão do governo Bush de tomar posse do espaço sideral e determinar quem pode ou não mandar foguete para o espaço? Nem Hitler ousou tanto. Isso é coisa de um deus, ou, o que parece mais certo, de um psicopata que leva ao extremo sua doença mental. Exagero? Pois, que tal os editores e repórteres internacionais lerem Moniz Bandeira. Diz ele num dos seus artigos (‘Guerra contra o terror será permanente’):
‘Em 1939, pouco antes de invadir a Polônia, Adolf Hitler disse ao alto comando da Wehrmacht: `Darei uma razão propagandística para começar a guerra, não importa se é plausível ou não. Ao vencedor não se pergunta depois se disse ou não a verdade´. Hitler sabia que uma propaganda, para ser efetiva, necessita de feitos. E, para provar que a Polônia não aceitava suas propostas de paz, ordenou a Operação Himmler: alemães da SS e da Gestapo, uniformizados como soldados poloneses, atacaram uma estação de rádio em Gleiwitz, fronteira da Alemanha. Aí estava a `razão propagandística´. O projeto de Hitler era estender o domínio da Alemanha, impondo a todos os países o modelo político do III Reich, e construir o Grande Império Germânico, para durar ao menos um milênio.
(…)
[O governo Bush lançou o] Projeto para o Novo Século Americano (Project for the New American Century), que propunha aumentar os gastos com defesa, fortalecer os vínculos democráticos e desafiar os `regimes hostis aos interesses e valores´ americanos, promover a `liberdade política´ em todo o mundo e assumir para os EUA o papel exclusivo na tarefa de `preservar e estender uma ordem internacional amigável para nossa segurança, nossa prosperidade e nossos princípios´.
Esse é o objetivo de George W. Bush, cuja administração serve não somente aos interesses das empresas petrolíferas, voltadas sobre o Mar Cáspio e o Golfo Pérsico, mas também às indústrias bélicas, que necessitam experimentar os novos armamentos e tecnologias numa guerra real, gastar os estoques que possuem e receber novas remessas’.
Para ter acesso ao pensamento de Moniz Bandeira, basta a internet ou uma boa livraria ou uma biblioteca. Nada que um editor ou repórter internacional não consiga fazer usando um dedo. Então, por que a cobertura internacional da Radiobrás é feita de isopor – frágil, plástica, perigosa para o meio ambiente e as pessoas? Preguiça ou opção ideológica? Ou será que os editores e repórteres ainda não perceberam qual é o plano de George Bush e sua gangue?
Alternativa óbvia
No tratamento da arte e da cultura a TV Nacional deu um salto de qualidade. Existe a diversidade. Na verdade, a emissora está cumprindo seu papel de revelar as múltiplas manifestações brasileiras. Ainda peca em alguns detalhes, mas mostrar o que existe já é muito. Pior era no passado, quando a TV chegava ao absurdo de exibir a missa católica domingueira.
Se a TV deu um salto pra frente, a Rádio Nacional FM permanece com mentalidade de museu dos antigos. A programação musical insiste em bossa-nova ou nos clássicos dos idos de 1960 ou 70. Que se toquem os clássicos, João Gilberto é muito bom, mas a vida não se resume a um barquinho que vai e um barquinho que vem. Nem tudo é Tom Jobim. E a nova música brasileira? Nada? Nada. Não toca na Rádio Nacional. Para tocar na emissora o bom artista deve estar morto ou ser idoso.
Imagino que a direção da rádio tenha estabelecido que o importante é garantir a audiência com este nicho: os devotos da bossa-nova. E não consegue tocar uma canção nova, inclusive destes mesmos autores. Só toca o velho disco de Chico Buarque. A impressão é de que morreu Chico, morreu Caetano, morreu Gal… A impressão é de que não existem Chico César, Luiz Melodia, Lenine, Lula Queiroga, Elomar, Xangai, Casa de Farinha, Mombojó, Cascabulho, Jackson do Pandeiro, Nilson Chaves, Roberto Correa, Móveis Coloniais de Acaju, Uakti, Vitor Ramil, Tomzé, Elza Soares… E muitos e muitos outros etcéteras que a memória não viu neste momento.
Infelizmente a rádio ainda discrimina a música independente. Ela comete o equívoco de abrir nichos na programação para tais músicos. Ora, que existam programas que abordem o músico independente, mas se a sua música não entra na programação normal – o que acontece hoje – ele permanece excluído. Será sempre uma coisa fora do normal, fora da rotina da rádio.
A mesma solução a rádio adotou para o caso da música latino-americana e para a música de língua portuguesa: criou programas especiais. Insisto: os programas especiais são bons, mas se os programadores não usam estas músicas – o que ocorre hoje – não muda muita coisa na rádio.
A melhor alternativa, a alternativa óbvia para um poder democrático, é diversificar os meios de comunicação. É permitir que surjam mais e mais rádios e TVs comunitárias, jornais e revistas comunitárias. E, claro, fortalecer as emissoras estatais conforme um rumo ideológico mas não-partidário. Não é fácil. Mas boa parte do caminho já se fez. No que acertou, a Radiobrás está de parabéns.
******
Jornalista, autor de Trilha apaixonada… das rádios comunitárias, diretor do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal