Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Passe livre para a concentração

A subcomissão responsável pela área de comunicação na Assembléia Constituinte de 1988 é conhecida por ser a única a ter encerrado suas atividades sem um relatório final consensuado entre seus membros. Um dos temas que escapou ao embate que marcou as atividades do grupo foi o inciso 5º do Artigo 220, segundo o qual ‘os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio’. Segundo o pesquisador Venício Lima, o texto, resultado de uma emenda do deputado Carlos Alberto Caó (PDT-RJ), foi consensual e facilmente entrou na redação final do capítulo.

À primeira vista parece estranho que tal restrição fosse admitida pelos parlamentares alinhados aos interesses dos radiodifusores, uma vez que a situação da mídia brasileira era de um oligopólio consolidado especialmente nas Organizações Globo. Naqueles anos, o grupo ultrapassava os 60% de participação na audiência de TV e abocanhava mais de 70% do bolo publicitário televisivo. O tempo mostrou que não houve nenhuma incoerência.

‘Na história das políticas de comunicação no país, as concessões feitas pelo empresariado geralmente são em questões que não têm impacto real no quadro da mídia brasileira’, analisa Bráulio Ribeiro, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação. O dispositivo constitucional que proíbe a prática de monopólio e oligopólio é um destes casos emblemáticos, permanecendo até hoje como uma diretriz avançada que simplesmente não tem efeito prático algum na regulação da propriedade dos veículos de comunicação no país.

O principal motivo é a falta de regulamentação. Não há lei complementar ou ordinária que mencione o inciso ou defina o que é monopólio ou oligopólio. ‘Em todas as atividades econômicas, o Estado tem condição de regular porque consegue definir exatamente o que comprova a concentração da propriedade ou o controle do mercado’, diz James Görgen, coordenador do projeto ‘Donos da Mídia’. ‘Mesmo a teoria econômica já estipulou compreensões sobre poder de mercado significativo, ou outras questões vinculadas a estes conceitos. Mas tanto o Estado como o governo nunca se debruçaram para ver quais são os limites de propriedade na mídia.’

A falta de uma definição mais clara acaba prejudicando a única norma sobre controle de propriedade da radiodifusão existente. O Decreto-Lei 236 de 1967 estabelece os limites referentes às outorgas que podem ser obtidas por uma ‘entidade’. Em nível regional, tal restrição é de quatro estações de Ondas Médias e seis de FM. Em nível nacional cada ente só pode operar até duas estações de Onda Curtas e de Ondas Médias e até dez emissoras de TV, sendo no máximo cinco em VHF e duas por estado.

Segundo Venício Lima, o problema aí está no conceito de entidade. Sem a regulamentação do inciso 5º do Artigo 220, os empresários aproveitam-se desta brecha legal para ir além do limite estipulado pelo decreto, bastando mudar a pessoa jurídica responsável pela outorga para não haver qualquer conflito. Assim, basta que a família Saad, dona da Rede Bandeirantes, utilize uma pessoa jurídica – cujos sócios são uma parte dos familiares – para controlar até cinco emissoras e crie outra entidade, com outra parte da família, para obter outras cinco TVs e já não há nenhum desrespeito ao Decreto-Lei 236.

Oligopólio em rede

Para além do limite estabelecido em lei, a concentração do mercado ocorre na organização das redes por meio das relações de afiliação. As afiliadas retransmitem a programação das cabeças-de-rede, recebendo parte da publicidade captada pela rede, em valores proporcionais à audiência local. As cabeças arrecadam parte dos valores provenientes da propaganda local e, ao aumentarem seu alcance por meio das afiliadas, conseguem ter poder de influência política e se tornarem economicamente atrativos para os anunciantes nacionais.

Neste cenário que mistura desregulamentação e organização histórica do mercado, a concentração pode ser verificada em três níveis, segundo tipologia utilizada por Venício Lima. Primeiro, há uma concentração horizontal, caracterizada pelo controle de diversos veículos de um mesmo tipo. Isso ocorre tanto na televisão (com casos como o da cidade de Brasília, onde a Record transmite a Record Brasília e a Record News), no rádio (como em São Paulo, onde a Bandeirantes detém as estações BandNews FM, BandFM, Rádio Bandeirantes, Nativa, SulAmérica e Mitsubishi) e na mídia impressa (como no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde o Grupo RBS controla oito títulos: Zero Hora, Diário Gaúcho, Pioneiro, Diário de Santa Maria, Diário Catarinense, Jornal de Santa Catarina, Hora de Santa Catarina e A Notícia).

Na chamada concentração vertical, um mesmo grupo comanda diversos elos da cadeia produtiva. É o caso explícito da Rede Globo, que produz e distribui seu próprio conteúdo na TV aberta e mantém a programadora GloboSat (que produz canais como Multishow, GNT e Globonews), a empacotadora NetBrasil e a distribuidora Net Serviços no mercado de TV a Cabo. O último e mais grave caso é a propriedade cruzada, marcada pela posse de vários veículos (rádio, jornal, TV) por um mesmo grupo. É o caso de praticamente todas as redes de TV e dos grupos afiliados regionais, além de outros grandes grupos que se organizam a partir de outras mídias (como os grupos Folha, Estado e Abril).

No entanto, tal relação não se dá de maneira direta. ‘Quantitativamente, não podemos falar em controle direto dos grupos nacionais. Mas ele é indireto, por várias relações econômicas e políticas onde a concentração acaba ocorrendo’, explica James Görgen. Segundo dados levantados pelo projeto ‘Donos da Mídia’, as cinco principais redes de TV (Globo, SBT, Record, Bandeirantes e Rede TV) têm vinculados a si 145 grupos afiliados e 869 veículos. A Globo é maior, com 274 veículos ligados, seguida pelo SBT, com 197, a Record, com 160, e a Bandeirantes, com 156. A RedeTV, embora seja uma organização nacional, aparece com apenas 82 emissoras e publicações vinculadas à sua rede.

Um fenômeno recente tem sido a ascensão de redes independentes. Segundo Görgen, no início da década, 80% ou mais dos veículos estavam ligados às cinco principais redes. Atualmente, este índice caiu para 70%. Ao total, existem hoje 33 redes de TV e 21 de rádio, que envolvem, respectivamente, 1.393 e 686 veículos. Mas isso não reduziu o poder e a influência deste núcleo, chamado por ele de ‘Sistema Central de Mídia’. ‘Estes conglomerados controlam as duas pontas do sistema. A maior infra-estrutura de distribuição, a TV, que alcança 98% do país, e, de outro lado, o jornal, onde se dá a formação de opinião da elite’, avalia.

Outra mudança dos últimos anos é a variação dos agentes que controlam estes meios. Segundo dados da pesquisadora Susy dos Santos, do total de emissoras de TV, 34% são comandadas por políticos, 23% por empresários, 21% por fundações privadas e universidades, 16% por Igrejas e 6% por órgãos estatais.

Coronelismo eletrônico

A presença majoritária de políticos no comando de veículos é resultado do fenômeno que ganhou o nome de ‘coronelismo eletrônico’, no qual a troca de favores entre governos e lideranças regionais e locais vem gerando a expansão da apropriação da mídia por estes últimos como instrumento de legitimação política. Uma outra face deste processo é o uso de fundações por estas lideranças para obterem outorgas de rádios e TVs educativas. Como, desde 1995, os interessados em concessões comerciais devem participar de processos licitatórios, ficou mais fácil buscar licenças de educativas a partir da constituição de fundações de fachada.

Outro elemento importante evidenciado por este quadro é o crescimento da presença dos grupos religiosos, classificado por Venício Lima de ‘coronelismo eletrônico evangélico’ (leia mais sobre o assunto). ‘Eu ando muito assustado com a presença da religião. Para eles crescimento religioso está intimamente ligado à questão da mídia’, comenta o pesquisador.

Para além de se questionar a validade de um serviço público estar voltado aos interesses de um grupo religioso particular, para Lima o comportamento destes grupos no Congresso também reforça o lobby dos radiodifusores contra a regulamentação referente à propriedade dos meios de comunicação.

Um dos grupos religiosos que tem se notabilizado por uma estratégia diferenciada é a Igreja Universal do Reino de Deus. A organização religiosa comandada por Edir Macedo tem apostado não no uso da mídia para promoção da fé, mas na constituição de uma rede em condições de disputar com a Globo. Nos últimos anos, a Record tem efetuado uma estratégia agressiva de disputa de grupos afiliados, retirando importantes veículos regionais do SBT e ampliando seu alcance.

Mudanças pouco prováveis

Para Venício Lima, a concretização da proibição ao monopólio, aliada à regulamentação da regionalização da produção, seria ‘uma revolução’ nas comunicações brasileiras. Já o jornalista Beto Almeida, que atuou como um dos militantes da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) durante a Constituinte, vê com ceticismo a possibilidade de colocar o inciso 5º do Artigo 220 em funcionamento.

‘O mais difícil de avançar é a proibição ao oligopólio. Como você vai proibir se esta é a forma de organização do capitalismo mundial hoje? Só com um processo de transformação’, comenta. ‘Um exemplo é a Constituição do Equador, que traz limites importantes como a impossibilidade dos bancos terem meios de comunicação. A única forma de combater isso seria pelo aumento da presença do Estado.’

Na avaliação de Bráulio Ribeiro, do Intervozes, mesmo sendo uma batalha difícil, a regulamentação do artigo 220, especialmente de seu inciso 5º, é uma disputa que deve ser encarada pelos setores progressistas da área da comunicação. ‘Um caminho inicial seria detalhar as restrições ao número de canais do Decreto-Lei 236, caracterizando como mesma entidade aquele ente que tiver pessoas com relações parentais de até segundo grau, aquele que tiver canais vinculados à mesma marca ou grupo, como Record e RecordNews, e que estiverem em relação de afiliação’, sugere.

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Do Observatório do Direito à Comunicação