‘As ruas de Arame, cidade de 27 mil habitantes no extremo leste da Terra Indígena Araribóia, oeste do Maranhão, trazem ao visitante lembranças de filmes de faroeste misturadas com cenas de periferias de grandes cidades.’ Assim começa a matéria Com Força Nacional, operação intensificará ações na Terra Indígena Araribóia, publicada em 15 de novembro de 2007 na Agência Brasil.
A respeito dessa matéria escreveu um leitor que não quis se identificar. Sua mensagem provém de um endereço eletrônico que começa com ‘bocadopovo’. Normalmente, a Ouvidoria não trata de mensagens anônimas, mas, nesse caso, problemas no texto, evidentes logo no primeiro parágrafo, nos desfiaram a uma análise mais detalhada da cobertura. Assim vamos tratar o leitor pelo codinome de que dispomos: ‘bocadopovo’.
Sua definição do local é: ‘Arame é uma cidade com apenas 19 anos de emancipação, cidade de homens e mulheres trabalhadores, agropecuária forte, comércio bastante ativo, jovens que se destacam, vários deles nas faculdades de nosso estado…’ Continuando, ‘bocadopovo’ lembra: ‘Não há que negar a existência de pessoas desocupadas em nossa cidade como em todas do mundo’. O leitor considera um preconceito com o povo do Nordeste brasileiro classificar a cidade como um filme de faroeste. ‘A lembrança que temos de um filme de faroeste é de um pequeno vilarejo com casas de madeira, pessoas trajadas como cowboys, pistolas na cintura, montadas em cavalos e um saloon cheio de prostitutas.’
Entre a imagem usada opinativamente na matéria e a descrita pelo leitor, com base no senso comum, parece não haver muita diferença. Arame é um dos menores municípios do Maranhão. Em matéria de violência, o Estado conta com apenas 2 entre os 556 municípios que figuram na lista dos 10% mais violentos no Brasil, de acordo com O Mapa da Violência no Brasil. Um deles, Açailândia, é vizinho das Terras Indígenas Araribóia e o outro, Imperatriz, fica na região, ambos na divisa com o Pará.
A cidade tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país: está incluída entre os 2% de municípios mais pobres. Ela serviu de base para a operação Araribóia, que reuniu servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal (PRF), todos sob escolta da Força Nacional de Segurança.
Talvez os problemas com a matéria tenham começado quando o repórter se colocou na posição de visitante. Apesar de sê-lo, devido a sua função tinha a obrigação de buscar um olhar mais crítico e menos preconceituoso. Talvez tenham começado quando a viagem foi marcada a convite da Funai, que pagou as passagens da equipe, sem que isso tenha sido citado nas matérias.
Pela descrição do ambiente em que se procedeu a referida operação, seus objetivos eram de intervenção na realidade local em busca de uma ‘paz duradoura’, conforme explicou o coordenador da equipe de campo da Funai, José Pedro dos Santos: ‘Nesta região estão o maior número de aldeias da Terra Indígena Araribóia e os maiores problemas. Aqui nós temos assaltantes, madeireiros, traficantes e foragidos da Justiça, sendo o maior pólo devastador [do meio ambiente]. Já tivemos assassinatos, invasões, índios oprimidos dentro de sua própria terra. O acampamento visa garantir aos indígenas das proximidades uma paz duradoura’.
Arame é um dos seis municípios que integram a reserva indígena Araribóia. Os outros são: Amarante do Maranhão, Grajaú, Santa Luzia, Bom Jesus da Selva e Buriticupu. Entre eles e seus vizinhos: Açailândia, Barra do Corda e Bom Jardim, localizados na região centro-oeste maranhense, encontram-se cinco dos oito municípios do estado que figuram entre os 100 municípios brasileiros com as mais altas taxas de desmatamento. A prática de atividades de extração ilegal de madeira em terras indígenas é uma das principais causas históricas de conflitos entre membros da população indígena e não-indigena.
Para o jornalismo, saber separar os argumentos dos representantes das instituições do Estado, ao justificar o uso legítimo de sua força de coerção, dos fatos objetivos da realidade pode fazer toda a diferença em termos de isenção de olhar e de opinião. Se em Arame existem todos os infratores citados na matéria, praticando todos os crimes mencionados, de quem seria a responsabilidade pela a situação ter chegado a esse ponto? Qual o papel constitucional das instituições que agora reprimem? Não seriam elas mesmas as principais responsáveis pela prevenção e fiscalização de tais crimes?
Sobre a história recente dos índios Guajajara, principal etnia da Terra Indígena Araribóia, a enciclopédia Povos Indígenas do Brasil relata o seguinte:
‘Novos conflitos sangrentos surgiram a partir dos anos 1960 e 70, com a expansão descontrolada de latifúndios no centro do Maranhão, empurrando muitos posseiros para dentro das terras indígenas. O maior palco destes conflitos foi de novo Cana-Brava [que fica entre Grajaú e Barra do Corda], com o povoado ilegal de São Pedro dos Cacetes, que existiu de 1952 a 1995 e contra o qual os Guajajara tiveram que resistir quatro décadas, com apoio apenas esporádico do governo federal. Outras ameaças surgiram a partir dos anos 1980, com o Programa Grande Carajás e com a cobiça de pequenas madeireiras regionais.’
Ou seja, a história indica que o Estado brasileiro não só foi omisso, como também colaborou ativamente para que posseiros da região, expulsos de suas terras por grandes projetos governamentais, fossem parar dentro da terra dos Guajajara. As matérias da Agência não trazem o processo histórico que deu origem aos atuais conflitos.
Para apurar responsabilidades, o jornalismo precisa estar necessariamente eqüidistante dos lados que se defrontam em uma operação. Caso contrário, a visão do Estado ou a visão do visitante que não tem compromisso com os direitos e deveres do cidadão residente tende a prevalecer como verdade incontestável. Juntar madeireiros a assaltantes, traficantes, foragidos da Justiça e ainda a população inteira da cidade, como se fossem a mesma coisa, mostra a forma preconceituosa como uma autoridade se referiu àqueles que, na sua opinião, violaram a lei. Para quem não sabe, madeireiro é uma profissão legal, um trabalho tão digno quanto o de jornalista.
O jornalismo na sua missão de informar com isenção e objetividade deve saber separar os fatos das versões, sejam elas oficiais ou policiais, que muitas vezes, inclusive, se destinam a justificar o próprio uso ostensivo da força. Ao se deixar contaminar pelo clima de uma operação repressiva, o jornalismo corre o risco de transformar cidadãos em assassinos, assaltantes e traficantes antes que a Justiça tenha oportunidade de fazê-lo. Da mesma maneira, espetáculo e operação policial nunca deveriam andar juntos sob a pena de um contaminar a objetividade e a isenção necessária da outra.
A matéria, ao invocar a figura de ‘cenas de periferias de grandes cidades’, mostra o desconhecimento e o preconceito, conforme assinalados pelo leitor. Nas periferias há cenas de horror como há de paixão, de amor e de solidariedade. Essas cenas podem também ser encontradas tanto no centro com em qualquer outro lugar, seja em pequenas ou grandes cidades. ‘Lembranças de filmes de faroeste’ é uma figura tão subjetiva que nem valeria a pena comentar, caso ela não estivesse como de pano de fundo da reportagem.
Em sua descrição opinativa, a matéria classifica os jovens como ‘curiosos’ e os adultos como ‘desconfiados’. Apresentados dessa forma, cidadãos são vistos como simples figurantes de um filme que está para ser rodado no cenário que conta com adereços de ‘casas precárias’ e de um ‘comércio amontoado nas calçadas’.
Nas nove matérias sobre o assunto foram ouvidas 20 fontes, algumas citadas mais de uma vez: funcionários da Funai e de outros órgãos públicos (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Ibama e Polícia Militar) integrantes da Operação Araribóia: 13 (65%), índios e a diretora da escola da aldeia indígena: 4 (20%) e fazendeiro, filho de fazendeiro e caminhoneiro acusados de violar a lei: 3 (15%).
Observa-se que nenhuma autoridade local foi entrevistada, tampouco comerciantes ou moradores. O que será que pensam o poder público local e o governo do estado do Maranhão sobre esses conflitos? Qual a responsabilidade histórica deles? Quais as providências que tomaram para evitá-los? E as famílias que vivem nesse município, estudantes, donas de casa, trabalhadores? Como lidam com os conflitos e como avaliam a operação Araribóia? Em tese é em defesa dos direitos desses cidadãos que estavam lá as autoridades e a reportagem. As matérias publicadas na Agência até 4 de dezembro, 20 dias depois que a equipe esteve no local, não traziam essas informações. Apenas no dia 5, foram publicadas duas matérias ouvindo fontes que não estão diretamente ligadas à operação.
A resposta da Agência Brasil sobre a cobertura está reproduzida ao final deste texto.
Há nove meses escrevi a primeira Coluna do Ouvidor aqui na Agência. Naquela oportunidade, colocava-me o desafio de contribuir para mudar a qualidade da relação que o(a) leitor(a) tinha com aquilo que lia, com a maneira como se informava, com a qualidade da informação.
Durante esse tempo, a Ouvidoria comparou o que foi feito em matéria de jornalismo com o que deveria ou poderia ter sido feito, sempre sob a demanda dos leitores e à luz do que consta no Manual de Jornalismo da Radiobrás.
O manual serviu como um pacto entre os profissionais e a direção da empresa e entre esta última e o público de nossos veículos de comunicação. Nele encontramos o que podia ou não ser feito, o que fazer e como fazer, com princípios éticos e técnicos, com normas de linguagem e de redação, tudo no sentido de evitar conflitos de interesse e direcionar o trabalho das redações para o jornalismo com foco no cidadão e não no governo ou nas instituições do Estado.
Nesse sentido procuramos orientar nossa crítica para provocar mudanças no sentido de produzir novos modos de pensar e de fazer o jornalismo. Foi uma crítica que não visou destruir nem desmerecer o trabalho dos profissionais, e sim proporcionar uma oportunidade para que esse trabalho fosse permanentemente repensado à luz da capacidade de compreensão do leitor.
Esta Coluna é a última de uma série de 37 deste ouvidor que estará de férias compulsórias a partir de agora até o final do mandato, em 31 de dezembro, pela Radiobrás. A empresa está sendo, neste momento, incorporada pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Uma nova Ouvidoria já está prevista e deverá ser implantada nos próximos meses.
Deixo a Agência a cargo de leitores atentos como ‘bocadopovo’, que repudiaram a forma preconceituosa como foi tratada sua cidade. Deixo a Agência Brasil nas mãos da própria Agência, que precisa repensar o patrocínio de viagens a convite de órgãos públicos e até que ponto isso compromete sua credibilidade.
O Serviço de Ouvidoria continuará funcionando normalmente sob orientação do ouvidor substituto, Helder Nozima. Agradeço a todos que colaboraram direta ou indiretamente com o trabalho realizado, especialmente à minha assessoria e aos leitores que nos escreveram.
Sonhos e realidade às vezes andam juntos.
Leia a resposta da Agência Brasil sobre a cobertura da Operação Araribóia:
‘A Agência concorda que a cobertura de uma operação como essa, ao lado da possibilidade positiva de constatar o fato ‘na ponta’, traz o risco de um tom policialesco ou de uma concentração de pontos de vista dos órgãos responsáveis pela ação. Avalia, entretanto, que o problema pode ser, no mínimo, reduzido com uma complementação a partir da redação. Isso se faz ouvindo autoridades, sociedade civil e pesquisadores e levantando dados socioeconômicos, como os do IBGE, e contexto histórico. Como fizemos, com atraso, a partir das observações do leitor em duas matérias (citadas abaixo).
Numa série de reportagens desse tipo é freqüente a dificuldade de ouvir outras fontes no local, por motivos logísticos (quando a equipe se desloca junto com participantes da operação) e de segurança (quando há confronto entre agentes da e aqueles que a ação busca retirar da área). O repórter conta que foi advertido pela Polícia Federal de que, naquele contexto, seria perigoso para um jornalista circular separado do grupo. Cabe lembrar que dois índios foram mortos na região duas semanas antes da operação. Menos de duas semana depois dela, um cacique foi assassinado.
Entrevistado após a mensagem do leitor, na última quinta-feira (5), o presidente da Associação Comercial do município aponta preocupação com a criminalidade. Opinião semelhante têm juiz e promotor ouvidos pela Agência Brasil, que destacam a necessidade de investimentos e presença maior do Estado para conter o problema. Veicular opiniões como essas não significa dizer que na cidade não há gente honesta – e a imensa maioria dos habitantes certamente é.
Ao descrever ao leitor o local onde se desenrolam os fatos em questão, o repórter procura elementos para situar o leitor. Isso funciona melhor se combinado a dados precisos, o que faltou na matéria sobre a cidade de Arame. Não há, entretanto, motivo para se falar em preconceito contra os nordestinos no texto destacado. Quanto à comparação com o faroeste, avaliamos que era desnecessária e, por isso, retiramos a a imagem do texto. Por fim, vale ressalvar que, embora a profissão de madeireiro seja legítima como qualquer outra, a autoridade citada se referia àqueles que exploram madeira dentro de uma terra indígena – atividade ilegal e freqüentemente associada a outros crimes, como a grilagem.
A Agência sempre registra quando a equipe viaja a convite de um órgão governamental ou de uma entidade. Neste caso, houve erro de não indicar que os custos foram parcialmente pagos pela Funai (a fundação arcou com as passagens). A informação foi acrescentada depois.
Isso não impediu nosso enviado de veicular críticas de entrevistados à instituição – como no texto Acuados, índios Guajajara pedem alternativas de renda e apoio para escola – ou à operação. O repórter cita exemplos: ‘Tinha índios dizendo não receberem assistência adequada, um cacique preocupado com consequências trágicas no futuro e um policial admitindo que o trabalho poderia ser inócuo no combate aos maiores criminosos’.’’