Como a comunicação do acordo entre o governo e as Farc ajuda a explicar a polarização da sociedade colombiana
As Farc, a mais antiga guerrilha do Ocidente, acabam oficialmente esta semana. Até sexta-feira, se o cronograma não atrasar, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia entregam à ONU os 40% que restam do seu moderno armamento, um passo decisivo do processo de paz assinado entre a guerrilha e o governo colombiano em agosto do ano passado, em Havana.
“Na próxima terça-feira (20 de junho) começa a terceira etapa de entrega das armas. Quando terminar, as Farc deixam de existir”, disse o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, no sábado, 17 de junho. E completou: “Às vezes, nós, colombianos, esquecemos o que está acontecendo”.
O lamento de Santos se dirige a uma sociedade dividida ao meio entre os que aprovam e desaprovam a paz com a guerrilha. E a comunicação do processo de paz explica muito a cisão.
“Sociedade quebrada”
Não posso falar aqui dos canais de TV porque não acompanho. Me limito às redes sociais, à comunicação oficial e aos três principais veículos impressos do país – os jornais El Espectador e El Tiempo e a revista Semana.
Há uma crítica quase consensual de que a Casa de Nariño, sede do governo colombiano, erra na comunicação dos benefícios do processo de paz. Uma crítica válida até para Humberto De la Calle, que chefiou a equipe do governo na negociação com as Farc. “Mas é apenas parte da análise”, disse De la Calle em entrevista ao Espectador. Para o político, advogado, escritor e pré-candidato a presidente, “a sociedade está quebrada, cheia de ódio e preconceito”.
As redes sociais são, com certeza, o lugar onde toda raiva e prejuízo são mais nítidos. Duas bolhas não se comunicam. Uma apoia a paz; outra a renega. Como explica o próprio De la Calle, as redes são espaços para reafirmar o que cada um quer ouvir, não para ouvir os outros. Algo a que o Brasil já se acostumou.
Santos, Uribe e as Farc
Na Colômbia, se somam outros três fatores que reforçam e realimentam o racha digital. Primeiro, a baixa popularidade de Santos. O presidente Nobel da Paz não tem mais que 12% de aprovação, segundo pesquisas. Qualquer tweet de Santos sobre a paz é seguido de um rosário de críticas quase sempre feitas com o fígado.
O segundo fator chama-se Álvaro Uribe. O ex-presidente elegeu a oposição visceral ao processo de paz como bandeira para tentar levar seu grupo político de volta ao poder. Segundo a revista Semana, “30% do país segue o ex-presidente e acredita no que ele diz. Se é verdade ou mentira, não importa”. A reportagem tem o título “O fantasma do castrochavismo”. O termo, criado por Uribe, é sua plataforma de medo para difundir entre os colombianos o risco de o país caminhar para uma “venezualização”, possibilidade aberta com as Farc transformadas em partido político.
O que a reportagem de Semana chama de “pouco realista” é possível ouvir facilmente da boca de taxistas de Bogotá, sempre um bom termômetro do pensamento coletivo de uma cidade. O raciocínio é que as Farc têm muito dinheiro e, com ele, podem comprar todo tipo de apoio para chegar pelo voto ao poder. Lá, levariam a Colômbia “para o comunismo”.
O terceiro fator explica a aposta de Uribe. Ainda que metade dos colombianos apoie a paz, 83% têm uma imagem negativa do grupo guerrilheiro. As Farc atuaram por 52 anos, tempo em que mais de 200 mil pessoas foram assassinadas e 6,7 milhões expulsas ou obrigadas a abandonar suas cidades, suas terras. São os desplazados, os deslocados pela guerra civil.
O Estado colombiano não é menos inocente. O escândalo dos falsos positivos é talvez o exemplo maior de como as forças oficiais agiram. Integrantes do Exército matavam civis inocentes e os apresentavam como guerrilheiros. O caso se tornou público em 2008. A grande ironia. O ministro da Defesa à época era o presidente Santos.
Resultados por inércia
A batalha digital entre os apoiadores de Uribe e do processo de paz deve se intensificar até o ano que vem, quando a Colômbia elege seu novo presidente.
O pós-conflito pode, sim, pender a balança para um dos dois lados. A paz com as Farc segue imperfeita, mas ao menos dois pontos centrais vão se cumprir: o cessar-fogo e o desarmamento da guerrilha. Ações que, por inércia, já produzem resultados. Segundo relatório de maio do Centro de Recursos para El Análisis de Conflictos, oito meses de paz já salvaram ao menos 2.670 vidas. O total de homicídios caiu 6% nos primeiros cinco meses do ano. Projeções apontam que a paz pode adicionar à economia 1% do PIB colombiano, segundo o economista Rudolf Hommes escreveu num artigo do El Tiempo.
Os desafios agora estão em pontos do acordo como a justiça para as vítimas (prevê, por exemplo, uma comissão da verdade e uma justiça especial para os envolvidos no conflito), uma reforma radical no campo e também uma reforma política que, entre outras coisas, transforma as Farc em partido político.
E como se posicionam as principais mídias impressas da Colômbia? Tanto El Espectador, o jornal mais antigo, quanto El Tiempo apoiam a paz. O mesmo faz a revista Semana, a principal revista de atualidades. As críticas são pontuais não só na cobertura como em editoriais. Com poucas exceções, os colunistas também seguem a mesma linha.
Em outros tempos, com certeza um apoio massivo dos veículos impressos teria imenso peso sobre a opinião pública e favoreceria o pós-conflito. Mas o caso colombiano é só mais um a reforçar a perda de influência das mídias tradicionais após a internet e que se agravou com as redes sociais.
Na atual edição da revista Semana, Bertha Lucía Fries, líder das vítimas do atentado em 2003 ao sofisticado Club El Nogal de Bogotá, está na seção Enfoque. Sob uma foto séria e serena, apenas uma frase: “Viremos a página. Se as Farc estão se livrando das armas, nós nos livramos do ódio”. Uma frase que impacta, mas que não ganhou força nas redes sociais. Ficou no papel.
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Flávio Arantes é jornalista.