Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Por que não? Como assim?

Foi Jürgen Habermas, o mesmo formulador do conceito de ‘espaço público’ [1] quem, posteriormente, também organizou os pressupostos da chamada ‘teoria comunicativa’ [2] que exige, dentre outros princípios, a boa fé entre emissor e receptor, e a coincidência entre o que se expressa e o que se pensa.

Se partirmos, assim, de que existe boa fé por parte do governo federal, ao iniciar os debates sobre uma televisão pública, só podemos louvar a iniciativa. É preciso, contudo, ir adiante, e discutir o conceito norteador dessa televisão (que poderá ser também uma emissora de rádio igualmente pública, afim de chegar a alguns segmentos da população que, ainda hoje, não são necessariamente alcançados pela televisão).

A questão da necessidade da intermediação entre as pessoas só nasceu com o surgimento da sociedade de massas, com a passagem daquilo que Ferdinand Tönnies chama de Gemmeinschaften para as Gesellschaften [3]. O conceito e o debate em torno da sociedade de massas emergiu no período entre as duas guerras mundiais. Nos anos 1960, Habermas desenvolveu o conceito de ‘espaço público’ que, desde então, tem sido largamente debatido. Um excelente ensaio de Nancy Fraser pode nos ajudar a problematizar o tema: para ela, o conceito habermasiano ‘is indispensable to critical social theory and democratic political practice’ [4].

Ela reconhece um déficit existente nas democracias liberais atuais e, partindo do princípio de que, para Habermas, ‘the idea of a public sphere is that of a body of `private persons´ assembled to discuss matters of `public concern´ or `common interest´’ (p. 112), propõe alguns avanços fundamentais para que se atinja essa democracia ideal. Dentre esses avanços, ela defende o acesso livre (`open access´), uma paridade participatória (`participatory parity´) e uma igualdade social (`social equality´) (p. 118) a que acrescenta, sobretudo em sociedades multiculturais, como é o caso dos Estados Unidos e do Brasil, a diversidade e multiplicidade de públicos (p. 121).

Tradição autoritária

Cándido Mozón, pensador espanhol que reúne, à experiência jurídica, a tradição do debate sobre comunicação social, salienta que ‘el concepto de espacio público nos remite a um número indeterminado de acepciones (…) Una primera referencia se centra en el concepto legal, institucional y público de espacio al referirnos com él a todo aquello que nos es de nadie, pero es de todos, representa a la comunidad, está amparado por la ley y se expresa bajo el concepto de bien común’ [5]. Continua ele: ‘una segunda interpretación de espacio público nos introduce de lleno en las investigaciones actuales sobre comunicación política y opinión pública: aquella que entiende el espacio público desde um punto de vista psicológico, comunicativo y envolvente de los indivíduos'(p. 339).

Aplicando essa dupla perspectiva à proposta ora em debate, o que temos de nos perguntar é: como se constituirá a direção dessa emissora. Primariamente, ela incluirá a oposição ao governo? Ela abrir-se-á para os mais diferentes segmentos da população, desde os próprios jornalistas a simples cidadãos, ou será governista e corporativista? Em segundo lugar: que temas aí serão pautados? Apenas aqueles que interessam ao governo de plantão ou todos aqueles que a sociedade (no seu mais amplo sentido coletivo) assim o entender? Quem terá a palavra nessas intervenções? Somente aqueles a quem se costuma reconhecer o direito de expressão, como as mais diferentes autoridades, ou todo e qualquer cidadão? Por fim, como serão os formatos dessa programação? Eles se abrirão para o livre acesso, à paridade participativa, à igualdade de ocasiões, à diversidade e à multiplicidade de públicos? Mais que tudo: o governo levará em conta, nas suas decisões as posições expressas através da emissora?

As experiências que conhecemos, como especialmente a da BBC inglesa e, em parte, a RAI italiana, indicam que esta pode ser uma boa oportunidade de um novo passo em busca da mais ampla democracia em nosso país. Conhecendo, porém, a tradição autoritária que os partidos de sustentação do governo ostentam, historicamente, e sabendo o quanto um governo – qualquer um – gosta de representar certa democracia, sem correr, contudo, quaisquer riscos, ficamos apenas na expectativa. De qualquer modo, o debate se abre, e esta é uma ocasião significativa para se avaliar inclusive a seriedade e a conseqüência dos debatedores quanto aos argumentos a serem trazidos ao cenáculo do debate.

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Professor de ‘Teorias da comunicação’ e de ‘Comunicação e opinião pública’ no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da AMECOS/PUCRS