Pela segunda vez em pouco tempo, o colunista Elio Gaspari deteve-se em sua coluna de domingo (18/9), no Globo e a Folha de S.Paulo (‘O telecapitalismo do atraso’) na questão da telefonia via VoIP (voice over internet protocol). Citou o sucesso do Skype – que acaba de ser comprado por 2,6 bilhões de dólares pela empresa de leilões virtuais eBay –, a oferta de telefonia através da internet por operadoras norte-americanas do porte da Verizon e ATT, e o atraso imposto aos consumidores brasileiros.
Não só tudo isso é verdadeiro como representa apenas a ponta do iceberg no processo de punição dos consumidores que não têm acesso à tecnologias existentes, as quais poderiam tornar mais baratas e eficientes as suas vidas. Quando assina uma operação de TV por assinatura, por exemplo, o usuário brasileiro paga por canais que não quer ver e, em compensação, não pode ver os canais pelos quais estaria pagando de bom grado. Transmissão e endereçamento de sinais, sejam de telefonia, dados ou televisão, não constituem mistério há muito tempo e é anacrônico, para dizer o mínimo, que as regras vigentes para tarifar esses serviços ainda sejam as dos anos 1980.
Tecnologia existe. A questão, como sempre, é definir o modelo. O noticiário eletrônico PayTV News, de quarta-feira (14/9), lembra a intensidade dos debates sobre os impactos da convergência entre TV e celular durante o evento 3G CDMA Americas Congress, em Miami. A essa altura, é impossível saber que tipos de conteúdo farão sucesso e é atrás dessas resposta que andam as operadoras.
Capacidade interativa
Na Coréia do Sul que está na vanguarda da convergência entre TV e telefonia móvel, a maior audiência concentra-se em conteúdos eróticos e nos canais em que as pessoas estão acostumadas na TV aberta. É isso o que elas querem ver agora, sobretudo porque todas ficam horas paradas em engarrafamentos de trânsito ou a bordo de trens urbanos. Mas todo mundo sabe que não é esse o conteúdo que prevalecerá quando a TV sobre celular deixar de ser novidade.
Sabe-se que as receitas que financiarão a TV sobre celular dificilmente virão do mercado publicitário. De acordo com o Pay TV News…
‘…quando a [coreana] KDF lançou o serviço de TV para aparelhos móveis distribuído por satélite, enfrentou uma situação muito parecida com o que pode acontecer no Brasil. Os radiodifusores reclamaram e não deixaram que seus sinais fossem distribuídos’.
O resultado é que o governo coreano obrigou a criação de uma rede de TV móvel terrestre, que deveria ser gratuita ao usuário de celular. Quem pagou essa conta? Por determinação do governo, a KDF e os fabricantes de celular.
O surgimento de novas tecnologias determina o aparecimento de novos modelos de negócio. Não adianta querer tapar o sol com a peneira: quando isso acontece, o resultado é invariavelmente a estagnação.
Quando os computadores pessoais começaram a se espalhar pelo mundo, o Brasil impôs a reserva de mercado para informática. Deu no que deu. A própria implantação do ambiente de TV por assinatura foi artificialmente retardado em 10 anos. O resultado também está aí. Novas tecnologias de comunicação têm uma coisa em comum com bicicletas: quem parar, cai.
A ATAS (American Television Arts and Sciences) anunciou na semana passada que a partir de 2006 estará conferindo seus prêmios Emmy aos melhores programas interativos e também às personalidades que mais colaborarem para o desenvolvimento da capacidade interativa em televisão digital. É uma decisão afinada com o seu tempo.
Padrão japonês
Pensar hoje em televisão sem capacidade interativa é como pensá-la em preto e branco. E, no entanto, existem instâncias que defendem um adiamento desses estudos, na crença de que as plataformas de televisão digital servirão para reproduzir exatamente o que já acontece hoje na TV, apenas com melhor qualidade de áudio e vídeo.
Se esse pensamento vigorar, a televisão brasileira vai perder a maior oportunidade que já teve para se inserir não apenas entre os grandes construtores de conteúdo (as telenovelas brasileiras desfrutam de uma boa reputação), mas entre os centros de excelência na arquitetura de formatos para televisão, o que nem longinquamente acontece neste momento.
Ao promover reuniões fora do âmbito do Comitê Consultivo do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), o ministro Hélio Costa, das Comunicações, provocou a natural desconfiança de setores do comitê. Estima-se que há muita gente falando ao mesmo tempo e sem a coordenação que se esperava do governo. Os radiodifusores, por exemplo, estão empenhados em conversas paralelas com pelo menos três dos consórcios de pesquisa contratados pelo governo para desenvolver elementos para uma política industrial para o setor. Elas se concentram nos set-top boxes, nos middlewares e nos sistemas de transmissão. Participam destas conversas a USP, a Universidade Mackenzie e a Universidade Federal da Paraíba.
O ministro bate na tecla de que com 50 milhões de reais é impossível para o Brasil desenvolver padrões semelhantes aos que foram desenvolvidos com 3 bilhões de dólares; e disse informalmente na segunda-feira (19/9), em Brasília, que em conversa com o ministro Antonio Palocci ficou acertada a isenção de impostos por 8 anos para os radiodifusores que quiserem importar equipamentos digitais.
Pelas tendências demonstradas por parte dos radiodifusores hegemônicos, deve ganhar um doce quem apostar que no dia 10 de fevereiro do próximo ano será anunciada a escolha do ISDB, japonês, como padrão a ser utilizado no Brasil.
Fim da fila
O embate, no entanto, está longe de se restringir à esfera da política industrial. Muitos dos setores que atuam no âmbito do SBTVD estão empenhados em vislumbrar, para a TV digital, aplicações que transcendam a migração das transmissões para sistemas de alta-definição (HDTV).
Neste momento, as emissoras de televisão são contrárias a essas aplicações, pelo temor do impacto que isso possa vir a ter sobre o modelo de negócios hoje existente. É indiscutível que no momento seguinte elas serão favoráveis. O problema consiste em equacionar a extensão dos prejuízos que poderão ser contabilizados entre o primeiro momento e o segundo.
É como a prosaica questão da telefonia. A generalização do VoIP é inevitável e já não existe qualquer razão para que as conexões telefônicas sejam feitas de outra forma. Algumas operadoras mergulham no oferecimento desses serviços, que naturalmente pressupõem outros modelos de negócios (a Skype foi apenas uma das muitas empresas que foram do zero aos 2,6 bilhões de dólares em menos de três anos). Outras, tentam atrasar o processo por tanto tempo quanto consigam. Neste caso, quem é punida é, no jargão de Gaspari, a patuléia.
No caso da convergência de mídias num ambiente digital, punido pode ser todo o mercado – e mais: toda a industria audiovisual do país, seja com foco na televisão ou em qualquer outra mídia. Essa é uma avaliação que tem que ser feita com urgência e para a qual o governo não pode virar as costas. Sob pena de cair na armadilha de, por força de interesses circunstanciais, colocar o Brasil no final da fila entre os beneficiários da revolução digital.