Negócios privados funcionando com infra-estrutura pública. É este o perfil da TV comercial brasileira traçado pelo estudo do pesquisador James Göergen, do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom), sobre como prefeituras municipais de Norte a Sul do país dão suporte à formação das redes nacionais de televisão.
Recentemente publicada, a pesquisa mostra que um terço das autorizações para a prestação de serviço de retransmissão de sinal de TV registradas na Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) tem como entidade outorgada uma prefeitura. Em números absolutos, são 3.270 retransmissoras (RTVs) em nome de 1.604 municipalidades. Destas RTVs, 95% estão a serviço das redes privadas de televisão.
A porcentagem expõe a magnitude do que Göergen chama de ‘apropriação patrimonialista’ desse sistema, afinal, público. Porém, a ‘exploração semi-privada das estruturas públicas’, outra expressão usada pelo pesquisador para definir a situação, é até mais refinada e de mais difícil mensuração. Isto porque para cada uma destas RTVs pertencentes às prefeituras há um modelo diverso de cessão às geradoras dos sinais das redes comerciais. ‘Em alguns lugares, a equipe técnica é da rede e a instalação da prefeitura. Em outros, tudo é mantido pela prefeitura’, exemplifica Göergen. ‘Os contratos, em geral, não são conhecidos e muito menos há garantias de contrapartidas ao município’.
Além disso, como mostram casos levantados pelo Observatório do Direito à Comunicação, a confusão entre estrutura pública e interesses privados ultrapassa os limites formais da autorização de RTV repassada a uma emissora comercial. Mesmo retransmissoras que não estão legalmente sob a responsabilidade dos governos municipais são beneficiadas por investimentos públicos.
Suporte significativo
O estudo de Göergen permite avaliar o peso relativo do suporte público às redes privadas. A participação das RTVs de prefeituras no total da infra-estrutura de retransmissão das cinco maiores redes privadas de televisão do país – Globo, Record, SBT, Bandeirantes e Rede TV! –, é em média de 41%.
A Bandeirantes é a que apresenta o maior índice de ‘dependência’ destas retransmissoras, com 53%. O grupo paulista é o único em que o número de RTVs de prefeituras supera o de instalações próprias e de afiliadas.
A Rede Globo vem em segundo lugar, com 42%. Em números absolutos, no entanto, o maior conglomerado das comunicações no país mostra a sua força: 1.358 RTVs autorizadas para prefeituras estão disponibilizadas para a transmissão do sinal da Globo e/ou suas afiliadas. O SBT conta com 834 retransmissoras das municipalidades; a Bandeirantes com 414; a Record com 370 e a Rede TV! com 322.
A título de comparação, as duas maiores redes nacionais de TV de caráter público, a TV Cultura de São Paulo e a Radiobrás, têm apenas cerca 10% das suas redes de retransmissoras formadas por RTVs dos governos municipais.
Quanto custa ao cidadão?
É difícil saber, exatamente, quanto ganham as redes privadas com este suporte das prefeituras. De um lado, há um ganho difuso no que diz respeito ao faturamento publicitário. Como aponta o pesquisador, a presença da rede em um número maior de regiões significa poder estabelecer melhores preços para os espaços em sua programação. Por outro lado, há a economia direta por parte das empresas, que deixam de gastar com instalação, manutenção, segurança da infra-estrutura de retransmissão. Dada a diversidade de contratos e formas de relação estabelecidas entre municípios e geradoras, fica difícil saber quanto dinheiro sai do bolso do contribuinte para manter os negócios de algumas famílias. Mas é possível ter uma idéia a partir do contato com as prefeituras.
Em Otacílio Costa (SC), por exemplo, a Prefeitura Municipal desembolsou cerca de R$ 18 mil reais com a instalação de uma antena e retransmissores para distribuir o sinal da RBS TV Blumenau. Apesar deste gasto, estimado pelo secretário de Administração do município,Valdecir José Carvalho, a instalação da RTV não resolveu o problema. ‘Foi uma furada, até agora. A maior parte do pessoal ainda pega muito mal (o sinal da RBS)’, comenta Carvalho.
O valor apontado pelo secretário de Santa Catarina é modesto perto da estimativa feita pelo presidente interino da TVE-RS, o engenheiro Airton Nedel. ‘Contando todos os custos, uma retransmissora simples não te custa menos de R$ 70 mil, num município pequeno’, estima Nedel, que trabalha há mais de 20 anos no departamento técnico da emissora gaúcha.
Em Santa Cruz do Rio Pardo (SP), para reconstruir apenas a estrutura metálica da antena, destruída por um vendaval no fim de 2005, a prefeitura gastou cerca de R$ 40 mil.
Manutenção
Uma vez cedido o serviço de retransmissão à geradora de TV comercial, construída a infra-estrutura, as prefeituras têm ainda de lidar com o custo de manutenção das RTVs. Segundo Nedel, da TVE-RS, o mais comum é o governo local repassar às geradoras este serviço. ‘A forma de parceria normal é a prefeitura entrar com a cessão de local e a energia elétrica. Já na manutenção de equipamentos, as prefeituras estão tirando o pé’, afirma o engenheiro.
É o que acontece em Otacílio Costa. ‘A RBS trouxe os técnicos para a instalação e quando dá problema a própria RBS vem para arrumar’, conta Carvalho, secretário de Administração do município.
Mas há casos em que esta cessão de gestão de um bem público a uma empresa privada é ainda acompanhada de custos para a prefeitura. O pesquisador James Göergen flagrou este tipo de situação. No estudo, cita o caso da cidade de Ponta Porã (MS), em que o Diário Oficial do município registra que a prefeitura pagou à TV Campo Grande (afiliada do SBT) R$ 25 mil para a exploração da outorga do município.
Em Santa Cruz do Rio Pardo, a prefeitura municipal mantém um contrato com um técnico de manutenção, mas a assessoria de imprensa não informou o valor deste contrato.
Antena coletiva
O caso da cidade do interior paulista mostra claramente que a participação dos governos municipais na formação e manutenção das redes privadas de TV vai além da cessão de suas autorizações de RTV.
O município tem autorização para retransmitir o sinal de uma emissora. O sistema de consulta de dados da Anatel informa que a geradora vinculada a esta autorização é o SBT de São Paulo. Porém, segundo informações da assessoria de imprensa da prefeitura, o SBT teria antena e transmissor próprios.
A antena mantida pela prefeitura, recém-reconstruída, é usada para retransmitir outras 4 programações. Uma delas é a TV Cultura de São Paulo. As outras três são a Record, a Rede TV! e a Bandeirantes. Todas essas autorizações são próprias das geradoras instaladas na região. O técnico de manutenção contratado pela municipalidade atende a todas elas.
Outra antena coletiva é mantida pela prefeitura de Poços de Caldas (MG). O governo local não tem nenhuma autorização de RTV outorgada, mas no abrigo mantido pela prefeitura, funcionam diversas retransmissoras de TVs. A situação é ainda mais complicada na cidade mineira, considerando as informações de matéria publicada no site da prefeitura em 28 de março de 2006. O texto afirma que um temporal danificou os equipamentos da ‘Rede Vida, Século XXI e Rede Mulher’ e que ‘a normalização dos sinais ficou ainda mais difícil, uma vez que o poder público enfrenta algumas barreiras burocráticas para a substituição dos elementos danificados’.
Segundo os dados do sistema de consultas da Anatel, nenhuma destas emissoras têm autorização para instalar retransmissoras no município. No texto, o assessor de imprensa da prefeitura reconhece a situação de ilegalidade e diz que o governo municipal estudava, à época, contratar um técnico para montar o projeto técnico e pleitear autorizações de RTV para a regularização de várias emissoras. Mas, se as rádios comunitárias sem autorização sofrem com a fiscalização da agência, o mesmo não acontece com estas retransmissoras.
Em Ilhéus (BA), o site da prefeitura registra notícia que exemplifica outra situação em que a prefeitura coloca-se a serviço das emissoras. O governo municipal não tem, segundo os registros no sistema de consulta da Anatel, nenhuma autorização de RTV própria. Mas por conta do furto de equipamentos e da destruição de parte do centro de transmissão onde estão instaladas as retransmissoras das TVs Aratu, Cabrália, Itapoã e Bandeirantes, a prefeitura cedeu pedreiros, serralheiros e eletricistas para reparos da estrutura. Além disso, comprometeu-se em manter seguranças no local.
O Observatório do Direito à Comunicação procurou a Prefeitura de Poços de Caldas para atualizar os dados referentes às retransmissoras instaladas na cidade, mas a assessoria de imprensa não retornou o pedido de informações. Na Prefeitura de Ilhéus, não foi possível localizar a assessoria de comunicação, responsável por repassar as informações.
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Demanda atendida é desprezada por modelo de negócio
Entender a lógica que cria a rede de retransmissoras públicas para uso privado requer pensar em dois planos: o comercial e o político. A soma destes dois fatores afeta tanto a distribuição geográfica das autorizações de serviço de RTV outorgadas para prefeituras, como a opção dos governos locais por servir a esta ou àquela emissora.
Ao interiorizarem as programações das emissoras, as RTVs ampliam a audiência das redes e lhes dão caráter ao mesmo tempo nacional e local. No setor privado, estes são fortes valores a serem agregados ao preço dos espaços publicitários. No entanto, há um limite claro no interesse das emissoras em bancarem a montagem e manutenção das RTVs: pequenos municípios, com economias frágeis ficam de fora dos planos das redes.
Este limite é imposto pela forma como as grandes redes nacionais se organizam: cabeças-de-rede gerando programações nacionais e geradoras regionais afiliadas, que inserem algumas poucas horas de programas e publicidade locais.
As RTVs estão, em sua maioria, ligadas às geradoras regionais. Para as cabeças-de-rede, que negociam os grandes contratos publicitários de cobertura nacional, parece bom negócio aumentar sua área de coberturas. Já para estas emissoras regionais não há muita vantagem em gastar com antena, transmissor e manutenção em localidades que não tenham anunciantes de interesse regional.
Airton Nedel, presidente-interino da TVE-RS, descreve a situação no Rio Grande do Sul e confirma este modus operandi das redes. ‘A RBS tem 10 geradoras no interior do estado. Pode faturar em cada uma delas, vendendo anúncios regionais. Ela só não tem retransmissora nas cidades em que não tem interesse comercial nenhum’, relata. ‘Já a Record tem 3 geradoras no estado, ou seja, 3 possibilidades de faturamento. Agora, SBT e RedeTV não tem nenhum interesse em instalar RTVs, porque não têm geradoras no interior’.
Adesão
Diante do desinteresse econômico das geradoras, resta ao poder público, enfim, assumir a missão de conectar a cidade com os serviços de radiodifusão de som e imagem. Entram em cena aí, interesses pouco claros, mas que desenham um sistema de retransmissão plenamente favorável às grandes redes comerciais de televisão.
Segundo Nedel, no Rio Grande do Sul, a TVE, que deveria ser a primeira opção, ‘é a última. Se as prefeituras vão escolher, escolhem pela audiência: a RBS, a Record, o SBT’, diz. Seria uma maneira de responder a uma demanda ‘natural’ da população local e apostar em agradar um maior número de eleitores.
Os números levantados pelo pesquisador James Göergen mostram, no entanto, que apenas a lógica da audiência não explica o fenômeno. Ele cita, a título de exemplo, o fato dos grupos Record e Rede TV! – respectivamente segunda e quinta colocadas nas pesquisas de audiência – apresentarem o mesmo número de RTVs vinculadas a prefeituras.
As prefeituras com que o Observatório do Direito à Comunicação entrou em contato citaram, invariavelmente, a demanda dos cidadãos por assistir programas que reflitam a realidade regional. Isso porque boa parte da população do interior do Brasil opta pelo uso de antenas parabólicas, que permite a recepção do sinal de satélite, ou seja, apenas as programações nacionais podem ser assistidas. Porém, em muitos casos, o sinal da geradora retransmitida vem da capital do estado, às vezes distante vários quilômetros do município. Em outros, é o próprio sinal de satélite que é retransmitido.
Inversão
Para James Göergen, para além de uma inversão da lógica que deveria reger a destinação da infra-estrutura pública – no sentido de que todas estas RTVs sequer servem para a conformação de uma rede pública e nacional de televisão –, há também uma subversão do espírito original do serviço de RTV. ‘O espírito da coisa pensada ainda no regime militar é que as RTVs fossem operadores da rede, com financiamento próprio, em um modelo igual ao de outros serviços de telecomunicações’, comenta. Neste modelo, uma entidade autorizada a ser retransmissora deveria garantir a distribuição de todos os sinais de TV gerados para a região. E garantir sua subsistência, por exemplo, com publicidade local. (Cristina Charão)