No princípio era o verbo. Isso até aparecer aquele chinês com a história de que uma imagem vale mais que mil palavras. Gostaria muito de me encontrar com ele para pedir satisfações. Sim, porque a partir dessa premissa que pretendeu justificar o primado da imagem sobre o texto, o conceito de informação não foi mais o mesmo. A mídia, pela via do entretenimento, deixou que a imagem se achasse a dona do pedaço. E em nome do primado da imagem, todos os pecados passaram a ser cometidos. Inclusive o dos textos indigentes, primários, óbvios, sem brilho, sem cor.
O avanço tecnológico dos meios audiovisuais empurrou a imprensa escrita para um formato que privilegia o olho, a sedução da imagem. Os jornais estão ficando cada vez mais parecidos com a TV. On-line, então, é igualzim. E pensar que tudo isso começou a se esboçar no final do século 19, com a revolução gráfica que Joseph Pulitzer pilotou no New York World, com uso despudorado de cores, introdução de ilustrações, charges e quadrinhos… Um espanto para os padrões da época, quando os jornais mais ‘avançados’ não passavam de páginas recobertas de letras miúdas e textos empolados.
Codificação da informação
O século 20, este que se recusa a acabar, vai ficar registrado na História como a Era da Imagem. Ao mesmo tempo, ficará conhecido como a era da desconstrução da linguagem, o período em que se aprofundou o fosso entre a cultura livresca e a cultura da imagem. E tudo porque os dois fenômenos eclodiram basicamente no mesmo período de 20 anos – do final dos anos 50 até os anos 70, quando a TV assume a posição de principal veículo de comunicação (notícia e entretenimento), a partir de dois fatos emblemáticos – as imagens da chegada do homem à Lua e a cobertura da guerra do Vietnã. Ocorre que é também nessa época que a civilização cristã-ocidental sofre o seu maior impacto com a dinamitação das certezas, a derrubada dos tabus, a chegada da Era de Aquarius, os hippies, as drogas.
As drogas. Por causa delas, instalou-se definitivamente o império da fragmentação da linguagem, dando origem ao vídeo-clip. Seu formato viria a se transformar numa espécie de ícone da cultura contemporânea, como a querer demonstrar que a imagem detém absoluto controle da espaçonave. E a embriaguez que uma sucessão de imagens desconectadas de sentido imediato provoca prescinde da palavra, que só comparece como coadjuvante de guitarras e urros, para ajudar a marcar o ritmo do rock.
Ocorre que a premissa do chinezinho, de uma imagem valer mais que mil palavras, estava errada. Só que continuou norteando a produção da informação, inclusive no telejornalismo, porque é bem mais cômodo aceitar o princípio contido numa frase idiota do que questioná-lo. O erro do chinês foi assentar o raciocínio na falsa premissa segundo a qual já existe um código visual mais expressivo e formador de sentido do que o bom e velho léxico. E foi aí que o chinês ‘se estlepou e queblou a cala’. Elaborou a frase antes do advento da televisão, extasiado e ‘sem palavras’ diante de uma bela paisagem. Não sacou que a televisão seria inventada. E que não é vídeo + áudio, mas, sim, um híbrido que resulta do efeito psicológico produzido pela fusão do que se vê com o que se ouve. Daí porque não se dissocia, no telejornalismo, imagem de texto, sob pena de perder-se a compreensão da mensagem. Em outros produtos audiovisuais, como o cinema de ficção e a teledramaturgia, a separação é até possível. Chega a ser saudável, em certos casos. Mas aqui trabalha-se em busca de um efeito estético e não, como ocorre no telejornalismo, da codificação da informação com a finalidade de permitir decodificação direta, clara, objetiva e destinada a impedir mais de uma interpretação.
Palavra dá a volta por cima
Por isso, os realizadores de telejornalismo em todos os níveis precisam, cada vez mais, atentar para a importância de se cultivar o bom e velho texto. O avanço tecnológico, sobretudo a digitalização, coroou a Era da Imagem. Fotógrafos e cinegrafistas têm à sua disposição o mais rico arsenal de todos os tempos para brincar de provar a veracidade da frase daquele chinezinho. Talvez consigam quando se descobrir a comunicação telepática.
Tudo indica que a marca do milênio que se inicia será não mais a das grandes descobertas e avanços, mas de se ir vencendo o desafio de encontrar melhores aplicações para o que já existe. E, no caso do telejornalismo, resgatar o poder e o vigor de um dos maiores avanços do gênero humano em todos os tempos – a palavra, entre todos os códigos, com certeza o que ainda detém o maior poder de comunicação. Duvida? Então faça um teste: assista hoje ao noticiário com o volume da TV no zero. Amanhã, faça o contrário: corte a imagem e deixe só o som. Melhor ir correndo buscar o jornal para saber o que aconteceu ontem. Já hoje, só com o som (com as palavras), você pode até perder alguma coisa, mas no final vai ficar sabendo quase todo o conteúdo do que for apresentado no telejornal. É a palavra dando a volta por cima e dizendo quem continua mandando no terreiro.
Se alguém encontrar aquele chinezinho, avise-o, por favor, de que tem um cara aí querendo levar um lero com ele. Na boa.
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Jornalista (TV Câmara), pesquisador e professor universitário (Faculdade de Comunicação da UnB), Brasília, DF