O programa Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (20/3) colocou lenha na fogueira da discussão sobre o anúncio feito há uma semana pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, sobre o lançamento de um projeto de TV pública para divulgar atividades do Executivo.
A proposta do governo de criar uma TV do Executivo foi contestada por parlamentares e especialistas, que levantarem muitas e variadas questões sobre a idéia. Entre elas, está a dúvida sobre o que vai acontecer com as TVs públicas já existentes.
Alberto Dines disse em seu editorial [ver abaixo] que o programa pretendia esclarecer o teor do anteprojeto e marcar a diferença de significado entre o público e o estatal.
Participaram do programa o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Luiz Dulci, em Brasília; o jornalista Nelson Hoineff, no Rio; e os jornalistas Gabriel Manzano (do Estado de S.Paulo) e Lalo Leal Filho (também sociólogo), em São Paulo.
Utilidade pública
O plano do governo prevê a união da futura rede com a Radiobrás, e pode exigir investimentos de pelo menos 250 milhões de reais em quatro anos. A rede poderá ser lançada até dezembro e seu intuito é divulgar o que se passa no poder Executivo, mas também nas áreas de cultura, saúde e educação, privilegiando assuntos que não são normalmente veiculados pelas TVs comerciais.
Os que contestam sua criação alegam que o governo já tem meios de se comunicar com a população. Para isso existem as TVs educativas. ‘O Brasil tem uma TV pública muito boa, que é a Rede Brasil; o Executivo já dispõe da Radiobrás’, disse a cientista política Lúcia Hippolito, em depoimento gravado. ‘Talvez o fortalecimento da rede pública de TV, não estatal, fosse muito mais interessante, sobretudo quando vem aí a TV digital com uma oferta de canais muito grande para o público. Criar uma TV do Executivo não faz sentido; seria muito mais racional, lógico, utilizar os recursos que o Executivo dispõe para fortalecer o que já existe.’
A diretora-presidente da Rede Brasil (TVE, Rio de Janeiro), Bete Carmona, segue o mesmo raciocínio de Lúcia e acredita que as TVs educativas existentes já estão voltadas para os interesses da população.
A decisão de criar a rede provocou críticas dentro do próprio governo. O secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, Orlando Senna, discordou da proposta do Ministério das Comunicações – que, para ele, não passa de um aumento da TV estatal que já existe.
O assunto gerou manchetes no decorrer da semana e a maior preocupação da mídia esteve em saber como o governo irá utilizar a nova TV. No Congresso, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) disse que sua criação gera uma contradição com um movimento que pretende reduzir a propaganda do governo. Em uma entrevista exibida no início do programa, Gabeira disse que existem projetos na Câmara dos Deputados que proíbem a propaganda do governo, a não ser que sejam para campanhas de utilidade pública.
Marco regulatório
Dines iniciou o debate agradecendo a presença de ministro e perguntando como surgiu a idéia de criar uma nova TV do governo. Dulci disse que essa questão já existe há muito tempo e que não é própria do atual governo. ‘Isso foi uma construção da sociedade brasileira ao longo de muitos anos’, afirmou. ‘É uma conquista democrática, ao exemplo do que já acontece nas democracias mais avançadas do planeta. A Itália tem televisão pública, [assim como] a Inglaterra, a França.’
A decisão do presidente Lula, e não do ministro das Comunicações, é de transformar a TV pública que já existe – e que só alcança 30% dos domicílios brasileiros – em uma TV de âmbito nacional.
Nelson Hoineff, também especialista em novas tecnologias de televisão, disse que o programa já começou bem ao traçar um diferencial entre TVs públicas e estatais. Mas que o foco principal da questão é o da função de uma TV pública. Para ele, esta deve ousar em relação aos modelos da TV comercial. Em seguida, perguntou ao ministro se o governo não deveria estar mais preocupado na redefinição e afirmação desse conceito do que com a criação de mais uma TV estatal.
Dulci insistiu no fato de que a proposta é dar uma dimensão nacional para o que já existe. Disse que durante o governo Lula, nem a Radiobrás nem a TVE fizeram propaganda de ninguém. ‘Se não fizemos nos primeiros quatro anos é, no mínimo, um preconceito acreditar que pretendemos fazer no segundo mandato’, afirmou. Disse também que o que se pretende é uma TV pública para cumprir o papel que as redes comerciais não cumprem, sem preocupações comerciais. E ressaltou que está de pleno acordo em buscar uma qualidade maior, mas que isso é um processo, já que houve melhorias nos últimos anos e é possível melhorar ainda mais.
O ministro deixou claro que a idéia é formar uma TV para tratar de questões que interessam a sociedade – o que não é feito pelas TVs comerciais, que se baseiam no ibope –, como o direito das mulheres, o combate ao racismo, os desafios da juventude e o processo educacional.
Gabriel Manzano perguntou a Dulci se faz parte das preocupações do governo construir um marco regulatório para as TVs públicas e em que bases ele seria definido. O ministro respondeu que ainda não há um formato definido. Sabe-se apenas que será aproveitada a estrutura que já existe.
Garantia de credibilidade
Lalo Leal Filho, fundador da ONG TVer, dedicada ao acompanhamento da qualidade da TV brasileira, lembrou que existem vários modelos de rede pública no mundo, mas que a melhor alternativa para a população são aqueles que não são meros complementos às TVs comerciais, mas que oferecem uma programação com qualidade suficiente para competir com elas. E perguntou a Luiz Dulci se essa será a proposta do governo.
Dulci respondeu que essa é a verdadeira questão de fundo. E que diversas democracias européias, como a Itália, conquistaram canais públicos fortes com orçamento do governo para investir numa programação de interesse do conjunto da sociedade. O ministro defendeu a decisão de Lula: ‘Não é porque é uma iniciativa do Estado que não deve acontecer. Isso é um dogma neoliberal’. Comentou que esse conceito deve ser afastado. Mas que se deve buscar um meio de que seja público na sua gestão e tenha participação da sociedade civil. O ministro afirmou ainda que o Estado tem um papel democrático importante no conjunto da sociedade, e é os interesses da sociedade que deve defender. A nova TV pública é um desses interesses.
Dines entrou no debate para dizer que dentre os vários modelos de TVs públicas, alguns estão mais ligados à difusão da cultura – como é o caso da TVE e sua parceira, a TV Cultura – e outros, como a Radiobrás, mais ligados ao governo. E questionou ao ministro qual desses modelos seria adotado pela nova TV.
Dulci comentou que são diferentes as relações entre cada uma delas e o governo. ‘O fato de ser público ou não, não está no modelo jurídico’, afirmou. Disse que existem TVs com autonomia jurídica e são instrumentos partidários, outras estão vinculadas aos governos do ponto de vista formal e têm grande autonomia na sua programação – seus dirigentes não são pressionados pelo poder político. Segundo ele, é esse caminho que se quer buscar. Disse que seria um erro fazer uma TV oficialista e propagandista do governo, pois assim ela não teria credibilidade. A idéia é oferecer um debate plural.
Aberto para debate
Nelson Hoineff defendeu a idéia de se redefinir o papel da TV pública para que ela possa, de fato, contribuir com a qualidade da programação. E cogitou: ‘Será que essa não poderia ser a postura do governo?’ O ministro concordou com o Hoineff , mas fez uma ressalva, dizendo que também há coisas boas na grade.
Gabriel Manzano afirmou que realmente a proposta ainda está se solidificando, mas pediu ao ministro que, na medida do possível, esclarecesse o financiamento, a autonomia e o tipo de controle externo que vai existir na TV. Dulci lembrou que está tudo no começo e que não iria fazer pronunciamentos apenas para agradar aos juízos antecipados sobre o que será a nova TV. Entretanto, afirmou que não havia condições de implantá-la sem os recursos públicos, até porque a intenção não é competir por publicidade. As decisões só serão tomadas depois de ouvidos os diversos ministérios envolvidos. E lembrou que o projeto também está aberto para ser debatido na sociedade. ‘Teremos que discutir uma forma real de autonomia, em que os gestores tenham de responder perante a sociedade’, disse o ministro.
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Imprensa esquenta o debate
Alberto Dines
Editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 409, exibido em 20/3/2007
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa. Entre as diversas novelas que estão no ar, uma talvez não dê muito ibope, mas é de suma importância para a sociedade brasileira. Exatamente há uma semana, o Estado de S.Paulo anunciava em manchete o anteprojeto apresentado pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, para a criação da Rede Nacional de TV Pública, para divulgar as ações do Executivo.
Em nossa última edição (13/3), no mesmo dia da divulgação do anteprojeto, lembramos que alguma coisa estava errada a partir do próprio nome: se a rede será pública ela não poderia estar a serviço do Executivo. Prometemos voltar ao assunto.
Aqui estamos. Com vantagem de que, no intervalo, o assunto rendeu – o que é bom sinal: sinal de que a imprensa não está engavetando os debates.
O teor e a qualidade da televisão são estratégicos. Quando se fala em desenvolvimento não se pode esquecer a difusão massificada e diversificada de conhecimentos. E, neste caso, tivemos um avanço didático: doravante será difícil que alguém volte a confundir o que é público e o que é estatal.
Desde a sua fundação, há mais de dez anos, este Observatório da Imprensa tem se preocupado e se ocupado com a questão da rede pública de radiodifusão. Hoje damos mais um passo e, quem sabe, tiramos esta novela das ambigüidades com que começou.