[revisado em 12/6, às 8h15]
A votação do Projeto de Lei 29/2007, que estabelece normas para o mercado de TV por assinatura e passou a abranger boa parte do audiovisual, transformou-se num jogo de empurra e tergiversações. Isso diluiu bastante o projeto original, que no inicio serviria apenas para permitir a entrada nas teles, depois teimou em estabelecer cotas para a veiculação de produção para nacional nas redes que são transmitidas para o Brasil e nos lineups dos operadores que comercializam seus produtos no Brasil. Hoje ninguém é capaz de dizer – nem mesmo o seu relator, deputado Jorge Bittar (PT-RJ) – o que resta de suas proposições originais.
O projeto deverá ser votado na quarta-feira (18/6) pela Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTI) da Câmara dos Deputados. Ele deveria ter sido votado nas duas semanas anteriores (4 e 11 de junho), mas isso não aconteceu em grande parte pela entrada em cena das emissoras de TV aberta, que conseguiram obter a retirada da matéria da pauta. No dia 2, o ministro das Comunicações Hélio Costa afirmara que na forma em que o projeto se encontrava ele dificilmente iria à votação. Durante a sessão do dia 4, o deputado Bittar teria creditado o novo adiamento à ‘pressão de um grupo econômico específico’. Estava se referindo às redes de televisão aberta.
A razão pela qual as redes de televisão aberta fazem pressão sobre um projeto que em tese trata do mercado de televisão fechada poderia parecer obscura. Isso mostra, no entanto, como as questões estão inter-relacionadas. Prova que estão no mesmo pacote assuntos essenciais para o entendimento da televisão contemporânea – que só sob uma ótica muito antiga pareciam não ter muita relação entre si. Entre eles estão a produção de conteúdo nacional independente, os novos mecanismos de distribuição de sinais (inclusive o IPTV), a forma de atuação das programadoras estrangeiras no país e o desempenho que a televisão aberta vem registrando.
Paranóia pura
Os radiodifusores, por exemplo, utilizam a possibilidade de desnacionalização da produção que pode advir da entrada das teles no mercado de TV por assinatura (através da distribuição via IPTV, mas também por outros mecanismos) como argumento para postergar essa entrada – que, como se sabe, é inevitável. Já as programadoras se opõem às cotas previstas no projeto tanto para a produção e veiculação de conteúdo nacional como para as programadoras nacionais ‘incentivadas’ – ou seja, ‘independentes’.
É irônico que o projeto tenha entrado na esfera da regulamentação do audiovisual justamente para contemplar a preocupação das emissoras com a desnacionalização do conteúdo. As emissoras enxergam o conteúdo brasileiro como contraponto ao conteúdo importado. Ao produzi-lo em grande escala, portanto, estão do lado do bem. Isso é verdade. Mas do ponto de vista das emissoras, conteúdo brasileiro é o que elas próprias produzem e nada mais. Isso é miopia.
Por norma, as emissoras se opõem a qualquer tentativa de regulamentação do setor. É uma herança do modelo implantado na TV brasileira há quase 60 anos, mas com o tempo essa herança passou a não ser saudável para elas mesmas. Seria bom que se livrassem dessa doença.
Antes, as emissoras não precisavam de qualquer regulamentação. Hoje, vão adoecer se regulamentações não existirem. O problema é que as emissoras enxergam aí tentativas de ingerência, que não têm respaldo no mundo real. A atividade na Inglaterra, por exemplo, é altamente regulamentada – e infinitamente mais livre, melhor e mais bem sucedida que no Brasil.
Nativos digitais
A situação do PL 29 parece se complicar a cada dia, o que pode comprometer algumas conquistas consensuais do projeto, como a criação de um fundo capaz de injetar mais de 200 milhões de reais na produção diversificada para a televisão. Seu maior mérito, no entanto, reside na tentativa de estabelecimento de regras para uma nova ordem que já existe na produção e consumo do audiovisual. Se em algum ponto ele é moderno, é aí.
A questão é: hoje, o que um garoto está ouvindo no seu iPod em Ipanema repercute na dona-de-casa de meia-idade de Guadalupe. Se o país inteiro fica perplexo porque a esteia da novela das 8 da Globo faz ‘apenas’ 35 pontos, é preciso entender que o problema não está na Globo – e muito menos no clone que a Record deva conseguiu produzir. A ‘pequena’ pontuação apenas indica que os hábitos dos telespectadores estão mudando e isso acontece porque o conteúdo audiovisual é hoje incomparavelmente mais multifacetado do que era há dois ou três anos.
Novas plataformas surgem todos os dias. Com elas, novas formas de consumo e novas exigências de construção de conteúdo. Normatizar tudo isso pode parecer uma ousadia. Mas fechar os olhos a essa realidade apenas para dar sobrevida a modelos de negócio atualmente praticados significa uma aposta no atraso.
Há muitos tentáculos neste polvo obscurantista e não causa espanto que eles por vezes se ataquem mutuamente. O que se está fazendo, em grande medida, é escamotear do usuário os instrumentos que ele tem em mãos, os preços que podem ser praticados e as mudanças que isso pode acarretar no seu consumo de informações digitais, sejam elas de qualquer natureza.
Mas não há como tentar convencer o consumidor por muito mais tempo que os lineups das operadoras de TV por assinatura possam ser montados sem a forte participação da produção que emana de todos os pontos do país. Nem que as plataformas digitais para televisão aberta se resumam à substituição do conteúdo analógico pelo mesmíssimo conteúdo em alta-definição. Muito menos que a garotada, os nativos digitais, tenha que assistir calada à mesma xaropada que era oferecida a seus pais e deixe de lado as oportunidades de escolha oferecidas por um mundo conectado.
Mais que uma repetidora
Tudo está interconectado na produção e difusão do produto audiovisual hoje. Isso começa na concepção de que caminhamos inexoravelmente no sentido da construção de conteúdos multiplataforma, o que é óbvio. Mas acaba na constatação de que um cenário globalizante impermeável a regulamentações mínimas é algo desastroso. E desastroso não apenas para as produções nacionais, mas para todas as empresas nacionais que lidem com produção e distribuição de conteúdo, não importa se tais empresas sejam do tamanho de redes de televisão aberta ou de simples programadoras de conteúdo independente (brasileiro ou não).
Por isso, alianças e mudanças de posição nesse setor estão surgindo com a velocidade e fluidez de composições políticas em épocas de eleição. Por isso, também, esse projeto de lei – já tão descaracterizado e no qual, a essa altura, é difícil encontrar um setor da atividade que se dê por satisfeito com o seu texto atual – não deve ser visto como uma intervenção legislativa sobre uma atividade que deve caminhar sozinha, mas como uma proposta para que o Brasil não se torne apenas uma repetidora num ambiente televisivo globalizado.
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Jornalista