Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Propriedade cruzada: lá e cá

O Senado dos Estados Unidos aprovou, na noite da última quinta feira (15/5), uma inusitada Resolution of Disapproval (US Senate Joint Resolution 28) de iniciativa do senador Byron Dorgan, Democrata de Dakota do Norte, subscrita por outros 24 senadores, que impede a Comissão Federal de Comunicações (FCC) de implementar normas adotadas em dezembro de 2007 que ‘flexibilizariam’ as regras da propriedade cruzada dos meios de comunicação.

É o primeiro passo legal para anulação dessas normas. A mesma Resolução terá ainda que ser aprovada pela Câmara dos Deputados (House) e sancionada pelo presidente Bush. Analistas antecipam a aprovação pelos deputados, mas temem o veto do presidente, que apóia publicamente a ação da FCC.

Entre as razões apresentadas ao Senado para o voto a favor da Resolução, o senador Dorgan afirmou que as regras adotadas pela FCC davam ‘luz verde para maior concentração da mídia’ e que ‘mídia local diversa e independente é essencial para garantir que o público tenha acesso a uma informação variada’.

Obama apóia limite à concentração

O senador Barack Obama, que disputa a candidatura à presidência pelo Partido Democrata, foi um dos subscritores da Resolução. Após a votação, ele fez circular uma nota ‘encarecendo aos Deputados que rapidamente aprovem a Resolução’. Afirma ainda que ‘o mercado de mídia precisa refletir a diversidade de vozes da população e que é essencial que a FCC promova o interesse público e a diversidade na propriedade (da mídia).’

A norma da FCC autorizava os grupos de mídia a serem proprietários, ao mesmo tempo, de jornais e de emissoras de rádio ou TV, nos 20 maiores mercados norte-americanos, cumpridas duas condições: que houvesse pelo menos oito empresas de proprietários diferentes no mercado e que, se a transação envolvesse uma emissora de TV, que não fosse uma das quatro de maior audiência local. Fora dos 20 maiores mercados, valeria a regra anterior, isto é, nenhuma empresa jornalística poderia ser proprietária de emissora de rádio ou de TV no mercado (cidade) em que já tenha um jornal e vice-versa. Existe a possibilidade de exceções (‘waivers’) desde que o grupo de mídia comprove que a nova situação atende ao ‘interesse público’ e garanta a exibição de pelo menos sete horas semanais de jornalismo local.

Na prática, as normas aprovadas pela FCC, significariam um tremendo ‘furo’ no controle da propriedade cruzada da mídia, fundamento que tem sido adotado pela regulação do setor nos Estados Unidos desde a década de 40 do século passado. Na verdade trata-se de garantir um dos princípios básicos da democracia: um mercado com propriedade cruzada é um mercado concentrado, onde poucos grupos controlam o fluxo de informação e, portanto, não há diversidade, pluralidade, nem localismo, e o interesse público é substituído pelo interesse privado.

Casa Branca apóia flexibilização

Foi a segunda vez em cinco anos que a FCC, com o apoio da Casa Branca, aprovou normas que pretendiam ‘flexibilizar’ o controle da propriedade cruzada na mídia americana. Na primeira vez, em 2003, presidia a agência Michael Powell, filho do general Powell, ex-secretário de Estado dos EUA. Naquela época, decisões judiciais e a ação do Congresso, impediram a implementação das normas. Em 2007, sob o comando do advogado Republicano Kevin J. Martin, nomeado por Bush no início do seu segundo mandato, a FCC voltou à carga. As normas foram aprovadas por 3 a 2, sob forte protesto dos dois membros Democratas da Comissão.

Tanto em 2003 como em 2007 houve intensa reação da sociedade civil americana às decisões da FCC. Dos comentários sobre a decisão recebidos pela agencia reguladora, 99,9% foram contrários à medida. Além disso, as organizações que lutam pelo direito à comunicação passaram a exercer forte pressão sobre os congressistas no sentido de anular a decisão da FCC.

EUA não inspira o Brasil

Pena que os legisladores brasileiros não se inspirem no comportamento de seus colegas americanos na regulação do setor. Se implementadas no Brasil, as normas que estão sendo impugnadas em nome da democracia nos Estados Unidos provocariam uma revolução democrática na propriedade da nossa mídia.

Na Terra de Santa Cruz não há qualquer restrição à propriedade cruzada dos meios de comunicação. Ao contrário. Os grandes grupos de mídia se consolidaram exatamente pela ausência de limites à propriedade cruzada e, depois do fato consumado, passam a evocar o sagrado ‘direito adquirido’. Diversidade, pluralidade e localismo são apenas palavras vazias de sentido na nossa mídia.

É nesse contexto que circulam argumentos sobre a consolidação da democracia brasileira somente quando a opinião pública ‘esclarecida’ – formada pela minoria da população que lê jornais e revistas – se difundir para o conjunto da opinião popular – a imensa maioria que não saberia o que faz porque ‘vive no mundo da necessidade’.

Não seria mais democrático acabar com as eleições e entregar o país para os ‘formadores de opinião’ da grande mídia governar?

Viva a democracia brasileira.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)