‘A controvérsia entre razão x fé não tem um veredicto final, por isso tanto valem opiniões conciliadoras quanto opiniões divergentes […]..Se somos seres racionais, se isto nos distingue dos demais animais, por que em relação às religiões a razão precisa ser deixada de lado? […] Se todas [as formações religiosas] são nocivas como afirmam Harris e Hitchens, não sei, mas os argumentos me parecem convincentes, pois o outro lado ao se defender apenas ataca ao invés de argumentar com a razão’ (Rubens Pazza).
O meu artigo publicado no dia 27 p.p. recebeu, na seção de comentários, observações feitas por Rubens Pazza. Citei, em forma de epígrafe acima, o que pode ser considerado o seu núcleo discursivo. A esse respeito, preparei algumas considerações.
A Rubens Pazza: permito-me discordar respeitosamente. O artigo talvez não tenha sido suficientemente claro, de modo que pode ser conveniente ressaltar ainda alguns aspectos importantes: sobretudo, cabe responder diretamente a suas observações. O discurso do que eu chamei concepção irracional da razão parece ser forte porque parece ser constituído dessa maneira: ‘Eu tenho razão. Logo, eu sou bom’. Parece forte, parece afirmativo. Na verdade, ele é constituído de uma forma bastante diferente: ‘Toda formação religiosa é ruim. Eu odeio toda formação religiosa. Logo, eu sou bom’. Assim, esse discurso é fraco e negativista, e é esse discurso que intrinsecamente só ataca. Aparentemente forte, visto da maneira como é efetivamente constituído aquele discurso mostra-se apenas arrogante, prepotente. Quando a concepção irracional diz ‘eu tenho razão’, na verdade só há prepotência. Todos conhecemos outros exemplos de discursos cheios de arrogância que se esforçam por assumir a aparência de fortes quando, na verdade, são o oposto do que aparentam (escrevi isso pensando, é quase desnecessário ressaltar, o discurso nazi, que se propalava tão forte, confundindo fúria das feras com força).
Uma inversão foi cometida
A análise do modo como esse tipo de discurso se constitui, seus parâmetros, seus princípios e seus procedimentos, não é corretamente descrito quando o senhor diz ‘ao se defender, só ataca’. Analisar o discurso e seus elementos constitutivos não se confunde com ‘só atacar’.
O senhor disse que acha convincentes os argumentos de Harris. Argumentos correlatos a esse tipo de enunciados – como ‘todo muçulmano é um fundamentalista em potencial porque líderes de organizações islâmicas radicais são fundamentalistas’, ‘muçulmanos não deveriam ter acesso a estudos porque líderes de organizações radicais cursaram universidades de renome’, ‘todas as formas religiosas são ruins e intolerantes’ – podem lhe parecer convincentes. Só não engane ninguém (começando pelo senhor mesmo) achando e dizendo que esses enunciados e argumentos podem ser pautados pela razoabilidade ou pela racionalidade.
O senhor diz não saber se toda formação religiosa é ruim, mas acha convincentes os argumentos de quem ‘defende’ isso (cabe ressaltar mais uma vez: é quem ‘defende’ isso que, na verdade, ‘só ataca’). Assim, o senhor evita a questão principal: que os pressupostos (tais como ‘toda formação religiosa é intolerante’, ‘todas as pessoas religiosas são, ou necessariamente tornar-se-ão, intolerantes’) desses argumentos não são razoáveis nem racionais. Ou seja, quem ‘defende’ isso, na verdade não defende a razão, ‘só ataca’ a religião. O senhor cometeu uma inversão no seu comentário referente a quem defende e a quem só ataca.
Intrinsecamente irracional
O senhor mesmo citou a ideia de que a razão é um instrumento. Mais do que isso, a razão é um instrumento associado a procedimentos de razoabilidade. Instrumentos não possuem critérios para avaliar, não são capazes de julgar, não julgam. Quem julga, quem deve decidir, não são os instrumentos, mas são aqueles que usam os instrumentos – cada instrumento serve para algo; querer que instrumentos avaliem é pretender o ‘algo mais’ inadequado a que Nietzsche se refere no aforismo mencionado no artigo. Portanto, não é a razão que serve de base para dizer enunciados como ‘toda religião é ruim’ ou generalizações como as feitas por Harris sobre os muçulmanos em geral. A efetiva razão é associada a procedimentos de razoabilidade, não fornecendo critério para enunciados como aqueles. Se o resultado de discursos como o de Harris são enunciados como o que ele faz sobre todos os muçulmanos é porque antes faltou razoabilidade na maneira como o discurso foi constituído (o artigo tratou dos parâmetros, princípios e procedimentos da apologia irracional para analisar o modo como os discursos foram constituídos, não se limitando a julgar se os argumentos são ou não convincentes. Antes de julgar se os argumentos são ou não convincentes, é preciso verificar se eles foram constituídos segundo parâmetros e procedimentos de razoabilidade. O senhor pressupôs que há esses parâmetros e procedimentos; eu procurei examinar quais são os efetivos parâmetros e procedimentos existentes).
Em enunciados como aqueles, ‘razão’ só entra no final para parecer conferir credibilidade ao discurso. Em Harris etc., ‘a razão’ que aparece no discurso não é instrumento de procedimento de razoabilidade, é apenas elemento retórico de discurso irracional. No seu comentário, o senhor tratou aquele tipo de discurso como sendo racional, desconsiderando e evitando mencionar que o artigo diz que ele é intrinsecamente irracional, embora, como pelo menos dois leitores já apontaram na seção de comentário antes que eu o faça agora, isso esteja claro no artigo.
Sem critério da razoabilidade
Levemos em consideração um exemplo. Formulações do tipo ‘toda formação religiosa é intolerante’, ‘todas as pessoas religiosas são intolerantes’, são sustentadas por dois tipos de argumentos. Primeiro, os argumentos diretos: todas as evidências em que pessoas religiosas praticam intolerâncias. Segundo, os argumentos feitos por supressão: a formulação ignora, despreza, todas as evidências de pessoas religiosas que não praticam intolerâncias (os apologistas irracionais da razão não necessariamente negam a existência dessas evidências: tão somente as ignoram, as desprezam, como irrelevantes. O princípio é que tudo o que é real que não está de acordo com suas formulações é irrelevante e deve ser desprezado; o procedimento é suprimir, desconsiderando, o que contraria a formulação. Muito racional, Rubens Pazza). Da primeira parte da argumentação, não existe, na realidade, a relação de causalidade pressuposta – quando pessoas religiosas praticam intolerâncias, não é necessariamente por serem religiosas. O senhor não sabe se esse argumento está errado ou o quê? Dizer que não sabe dizer se está certo ou errado é dizer que não sabe avaliar, que não sabe ser razoável. Aquela ‘razão’ não pode decidir pelo senhor. Somos nós quem temos que decidir. Não jogue a responsabilidade para aquela ‘razão’. A razão – a que efetivamente existe – é só um instrumento e não pode decidir no nosso lugar. Quando o senhor abre mão de decidir sobre o que é mais importante para achar convincentes determinados argumentos (por motivo sem fundamento), certamente não está sendo razoável.
Então, o senhor considera os argumentos de Harris convincentes, mas eles são convincentes para o senhor sem que o senhor saiba dizer se concorda ou não com eles (o senhor não sabe estão certos ou errados). A esse respeito, cabe perguntar por que, em seus comentários, Rubens Pazza, o senhor ignorou um de meus argumentos, o de que se pode (e se deve) inverter aquela relação de causa e consequência, isto é, não entender a intolerância como efeito da religião, mas considerar o surgimento de uma formação religiosa como uma consequência possível (não necessária) das intolerâncias. Procurei argumentar com razoabilidade, não me submetendo a uma pretensa razão-líder. O senhor não sabe tomar a decisão razoável (decidir se acha certo ou não) a respeito dos argumentos; se deixa convencer sem ser razoável, sem usar critério de razoabilidade.
O risco que corre quem abre mão de decidir
O senhor abre mão de decidir e deixa para a ‘razão’ decidir no seu lugar. Eu uso aqueles instrumentos de razoabilidade e de racionalidade para que eu tome a decisão. Aquela ‘razão’ (supostamente superior, ‘algo mais’ do que instrumento de razoabilidade) não pode decidir no seu lugar simplesmente porque aquela ‘razão’ não existe (a não ser no discurso dos apologistas irracionais). Quem abre mão de decidir corre o risco de se deixar convencer por argumentos fracos por motivo confuso (confundir ‘defesa’ com ‘só ataque’ e vice-versa). Não é razoável nem racional abrir mão de decidir e ainda se deixar convencer de maneira confusa. Quem abre mão de tomar a decisão moral corre o risco de se deixar convencer por argumentos moralmente fracos.
Fazendo confusões dessa maneira sobre quem defende e quem ‘só ataca’, sete décadas atrás o senhor possivelmente acharia que Hitler só estava defendendo suas ideias enquanto Churchill ‘só atacava’: o senhor permaneceria incapaz de decidir se o que Hitler, por exemplo, dizia sobre os judeus estava certo ou errado, se o discurso era razoável ou não, se era intolerante ou não (o senhor talvez visse as pretensas racionalizações feitas pelo discurso nazi como resultado da ‘razão-suprema’, ‘razão-líder’, ‘razão-führer). ‘Eu não sei se o discurso nazi é errado ou não, se é irracional ou não, se é intolerante ou não [!], mas seus argumentos me parecem convincentes porque Churchill só ataca’: isso parece novilíngua; como a novilíngua original, não é razoável.
Decidir sobre o que é ou não é razoável parece ser, para o senhor, difícil. Não sei qual é a dificuldade em decidir que formulações como ‘todas as pessoas religiosas são intolerantes’, ‘o povo judeu é uma raça degenerada que deve ser erradicada’, ‘todos os muçulmanos tendem ao extremismo’ não são razoáveis. Da minha parte, difícil é se deixar convencer por motivo fútil sem ser capaz de decidir de forma razoável. Mas entendo que isso possa ser, como foi, fácil para o senhor.
Tolerância e intolerância
Três grandes problemas: a incapacidade de ‘saber’, não se importando em tomar a decisão, sobre o aspecto mais importante (se é certo ou não, se é razoável ou não); se deixar convencer, abdicando da decisão, por argumentos fracos; o motivo confuso (e superficial) pelo qual se deixa convencer. O senhor diz não saber se é certo ou errado: o que o senhor não sabe mesmo é que essa indecisão não é do âmbito da ‘razão’ pretensamente superior (que supostamente seria superior mesmo à sua capacidade de tomar a decisão), mas é do âmbito da decisão moral (decisão que deve ser tomada apoiada pelos instrumentos de razoabilidade). O título deste artigo poderia ser ‘Considerações a quem não sabe decidir (o que é certo ou errado) e decide não saber’.
Enfim, o senhor pode julgar convincentes os argumentos de Harris; só não ache que seja racional ou razoável julgá-los convincentes. Certamente, não é porque eles o convencem que eles são razoáveis ou racionais. É preciso inverter: eles o convencem mesmo não sendo razoáveis. Falta-lhes absolutamente o mínimo de razoabilidade. Além disso, certamente não há razoabilidade em se deixar convencer sem decidir se está certo ou errado; a esse respeito, o artigo apresentou uma série de argumentos que o senhor simplesmente ignorou (parece que não conseguiu vê-los devido à confusão referente a quem defende e quem ‘só ataca’). É preciso decidir sobre a questão principal, se acha certo ou não, razoável ou não, formulações como ‘todas as pessoas religiosas são intolerantes’ ou ‘todos os muçulmanos tendem a ser extremistas porque a intolerância e o extremismo são inerentes à religião’, formulações que desprezam como irrelevantes as evidências em contrário (ignorando, principalmente, todas as pessoas religiosas que não são intolerantes). Não se trata de controvérsia entre razão e fé, mas de contraste entre tolerância e intolerância. [Assim, a existência de pessoas religiosas que praticam proselitismo não é um argumento que torna menos intolerante a generalização sobre ‘todas as pessoas religiosas são intolerantes’: ou seja, não é razoável, racional, usar a existência de proselitismo religioso para generalizações intolerantes. E a razão não luta, ao contrário do que o senhor diz, porque nenhum instrumento luta.]
Eventuais contundências
O senhor mostrou razoabilidade na forma como defendeu suas idéias e precisamente por isso procurei tratá-lo respeitosamente nestas minhas considerações, mas discordo imensamente das suas observações: a ponderação que o senhor mostra na forma de discutir não impede que, no meu entender, o senhor cometa grandes equívocos referentes aos conteúdos da discussão e às avaliações desses conteúdos.
Essas considerações foram preparadas talvez de maneira um pouco rápida e peço desculpas por possíveis (senão prováveis) falhas, maiores do que o normal. Sobretudo, quero assegurar e deixar claramente registrado que as eventuais contundências não afetam o respeito protestado acima pela razoabilidade na forma como o senhor se comportou em suas observações. Além disso, convém ressaltar ainda, estas considerações são apenas complementares aos argumentos formulados no artigo anterior.
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Bacharel em História e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP