Se a internet é uma rede, a radiodifusão no Brasil é em boa medida uma teia de interesses políticos e comerciais. Essa combinação antidemocrática foi mais uma vez exposta ao público em reportagem de Elvira Lobato publicada na Folha de S.Paulo (‘Laranjas compram rádios e TVs do governo federal‘, 27/3). Começa assim:
‘Empresas abertas em nome de laranjas são usadas frequentemente para comprar concessões de rádio e TV nas licitações públicas realizadas pelo governo federal, aponta levantamento inédito feito pela Folha.
‘Por trás dessas empresas, há especuladores, igrejas e políticos, que, por diferentes razões, ocultaram sua participação nos negócios.’
Entre os políticos, Elvira cita o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR) e o radialista e ex-deputado estadual Paulo Serrano Borges, de Itumbiara, Goiás. Ícones desse conúbio são as famílias Sarney e Magalhães, que exploram as concessões das redes de televisão Mirante, do Maranhão, e Bahia, afiliadas da Rede Globo, além de emissoras de rádio e jornais.
Por mais um ano de mandato
O Observatório da Imprensa acompanha o assunto desde janeiro de 1997 (edição número 13), quando Alberto Dines escreveu, sob o título ‘Dois escândalos simultâneos‘:
‘A Folha de S. Paulo fechou o ano com chave de ouro: uma série de reportagens, efetivamente investigadas, comprovando a venda de concessões para novas emissoras por uma quadrilha instalada na Câmara de Deputados. Trabalho da repórter especial Elvira Lobato, perita na área das telecomunicações, assistida pelo próprio secretário de Redação, Josias de Souza, as denúncias escancaram dois escândalos simultâneos:
‘1) A máfia do rádio fazendo tráfico de influência no Congresso de forma idêntica à das sucessivas quadrilhas que assaltaram o Orçamento da União em proveito das empreiteiras.
‘2) O caráter espúrio que envolve o patronato radiofônico nacional, que se multiplica em cada legislatura e coloca na privilegiada posição de formadores da opinião pública − numa sociedade ainda não acostumada à leitura − um bando crescente de políticos e empresários do mais baixo nível, gozando das prerrogativas e imunidades constitucionais sem a menor qualificação para isso.
‘Este lamaçal não é novo, já ficara patente durante o mandato de José Sarney quando este, para conseguir um ano adicional na Presidência, fez uma farta distribuição de concessões radiofônicas e televisivas junto aos apaniguados (inclusive jornalistas que até hoje pontificam nas colunas de opinião).
Levantamento publicado no Estadão (setembro de 1996) revela que 104 dos 513 deputados federais e 25 dos 81 senadores são donos ou sócios de emissoras de rádio ou TV. Cerca de 40% das emissoras de rádio e 27% das de TV têm políticos como sócios. Como no século XVIII, os corsários vivem na sombra do poder e nele se cevam.’
A reportagem de Lobato é reproduzida na mesma edição.
Em troca da reeleição?
Em agosto daquele ano, sob o título ‘Dossiê das concessões de TV‘, o Observatório reproduziu reportagens publicadas no Correio Braziliense por Sylvio Costa e Jayme Brener. Foi um dos levantamentos mais completos feitos desde então.
Há nele nomes que, nos anos seguintes, figurariam com destaque no noticiário político, ou político-policial. Futuros mensaleiros, por exemplo. Costa escreve, na abertura da série:
‘Apesar de todo o cuidado que tomamos, é possível que tenhamos incorrido em falhas aqui e ali. Rastrear perto de 2 mil RTVs [estações Retransmissoras de Televisão], afinal, é como caçar agulha em palheiro. Em um caso ou outro, pode-se ter tomado como agulha um simples e inocente alfinete. Tal crítica não cabe, no entanto, para o grosso do material publicado. E dali emerge, inconfundível, uma faceta até então desconhecida do governo Fernando Henrique: a sua cumplicidade com o brasileiríssimo fenômeno do ‘coronelismo eletrônico’.
‘O leitor atento irá perceber que a maioria das RTVs entregues a políticos foi distribuída por portarias assinadas em datas próximas a janeiro de 1997, data da votação da reeleição. Mera coincidência? Talvez. Mas a relutância do Ministério das Comunicações em abrir as informações a respeito do tema divulgando, por exemplo, a relação das empresas e entidades que tiveram os seus pedidos para instalação de RTVs negados só estimula as suspeitas de que se tenta esconder algo.’
O cadastro sumiu
Nos anos seguintes o assunto não foi esquecido. O primeiro ministro das Comunicações de Fernando Henrique, Sérgio Motta, morreu em 1998. Foi substituído, no segundo mandato de FHC, por Luís Carlos Mendonça de Barros, Pimenta da Veiga e Juarez Quadros.
O primeiro a ocupar a pasta no governo Lula foi Miro Teixeira, que promoveu a divulgação, no saite do Ministério, do cadastro com os nomes dos sócios de emissoras de rádio e televisão no país. Miro foi substituído por Eunício Oliveira e este por Hélio Costa, que, como se sabe, teve importante carreira jornalística na TV Globo antes de se tornar político eleito em seu estado, Minas Gerais.
Costa assumiu em 2005. No início de 2007, o cadastro foi removido do saite. O episódio é contado pelo professor Venício A. de Lima, colaborador do Observatório da Imprensa, em ‘Recadastramento e direito à informação‘.
Enquanto esteve na internet, a listagem pôde ser consultada pelos interessados, entre eles o próprio Lima, que realizou, com a colaboração de Marcela Duarte D’Alessandro e Fábio Lúcio Koleski, a pesquisa ‘Concessionários de radiodifusão no Congresso Nacional: ilegalidade e impedimento‘.
Representação à Procuradoria Geral
Em outubro de 2005, o Projor, entidade mantenedora deste Observatório, auxiliado pela advogada Taís Gasparian, entregou ao então vice-procurador geral da República, Roberto Gurgel (hoje procurador geral), junto com o relatório da pesquisa, uma ‘representação destinada a contestar a promiscuidade entre concessões públicas de rádio e televisão e mandatos parlamentares’, como se escreveu na época.
Em 2006, o Observatório se fez representar em painel da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados sobre a relação entre cidadania, mídia e política. Foi pedida a ajuda da Comissão para combater o coronelismo eletrônico.
Em 2007, o redator chefe do Observatório da Imprensa, Luiz Egypto, informou, sob o título ‘Parlamentares na radiodifusão − Ministério Público propõe anulação de concessões‘:
‘O Ministério Público Federal no Distrito Federal, com base na documentação do Projor, propôs ações civis públicas para anular a concessão de seis empresas de rádio e TV vinculadas a deputados e ex-deputados federais. Os procuradores da República José Alfredo de Paula, Raquel Branquinho e Rômulo Moreira, signatários das ações, sustentam que ‘tais deputados, sem qualquer pudor, participaram das sessões em que houve análise e aprovação de requerimentos das empresas a estes vinculadas, inclusive votando pela outorga ou renovação das concessões’.’
As ações não prosperaram.
Bernardo é contra concessões a políticos
Em 2011, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, é contra a concessão de emissoras de radiodifusão a políticos, mas não espera que parlamentares legislem em seu próprio detrimento. Posição realista, não se pode negar, como é do estilo de Bernardo.
O combate ao coronelismo eletrônico deveria fazer parte da reforma política. Mas para isso seria preciso que houvesse uma maioria de parlamentares mais preocupados com a pátria, ou com o povo, do que com as urnas, ou melhor, com o modo de vida a que suas excelências se acostumaram ou a que aspiram.
Bernardo foi convidado para audiência pública da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados no início de abril. O tema em discussão será ‘a legislação do setor e possíveis mudanças na área’. Ele expôs suas ideias sobre a regulação da mídia no Observatório da Imprensa na TV. A transcrição do programa está em ‘Ministro prevê debate ‘bastante acirrado’’.
A transição incompleta
Alguns historiadores datam da promulgação da Constituição, em 1988, a redemocratização do país. Os primeiros quatro anos do mandato de José Sarney teriam sido propriamente de transição.
Também se pode fazer recuar o início do processo à decretação da anistia e às greves do ABC paulista, em 1979, passando pelas eleições diretas para governadores, em 1982, e pela incomparável campanha das diretas, em 1984.
Nesse recorte interpretativo, a transição para a democracia teria ocupado nove anos, ou onze, se se preferir considerá-la concluída com a primeira eleição direta para presidente. Em compensação, até aqui não houve retrocessos.
Entre a deposição de Getúlio Vargas, em 1945, e a promulgação da Constituição de 1946, passando pela eleição direta do general Eurico Gaspar Dutra, transcorreram apenas dez meses e meio. Mas o clima de abertura do pós-guerra foi logo substituído pela sombra da Guerra Fria, que levou à cassação, em 1947, do Partido Comunista. Até o fim de seu mandato, Dutra não regateou violência contra manifestações públicas.
Entre os defeitos da democracia que o país experimenta hoje, um dos mais clamorosos, dadas suas repercussões nas eleições para o Executivo e o Legislativo, é o coronelismo eletrônico. Se as campanhas eleitorais são caracterizadas, cada vez mais, pelo uso do tempo de televisão ou rádio que fazem os candidatos e suas equipes, o que dizer de emissoras que passam quatro anos promovendo o ‘seu’ vereador, prefeito, deputado estadual, deputado federal, senador ou governador, e vetando adversários ou rivais?
Que jornais e revistas, impressos ou eletrônicos, façam isso, é problema deles e de seus leitores. Mas canais de radiodifusão são concessões públicas. Facultar o coronelismo eletrônico é colocar meios públicos a serviço de interesses privados – políticos e comerciais, tudo embolado numa mesma teia que tolhe a cidadania e restringe a expressão de opiniões, preferências, propostas e interesses coletivos.
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Outros textos do Observatório que tratam do assunto e contêm remissões:
Para acabar com a farra das concessões a parlamentares – Alberto Dines
Conflito de interesses no Congresso Nacional – Leticia Nunes e Larriza Thurler
Ministro admite derrota antes do jogo – Mauro Malin