Esqueçam as imagens romantizadas de As neves do Kilimanjaro, de Ernest Hemingway. Hoje em dia, neste começo do século 21, a África está muito mais para a impressionante expressão de um Joseph Conrad: ‘O horror, o horror’, imortalizada nas telas de cinema no filme de Francis Ford Coppola Apocalypse Now.
‘Na verdade, o continente africano está vivendo um tsumani diário, e silencioso’. Quem afirma é Mouhamadou Tidiane Kassé, editor-chefe do Departamento de Imprensa do Instituto Panos da África Ocidental, com sede em Dacar, Senegal. É um tsunami, ignorado pela grande mídia, que provoca milhares de mortes diariamente, por doenças como a Aids e a malária. Só em Malauí, como exemplo, a Aids mata cerca de 10 pessoas por hora, ou 240 africanos por dia.
Durante o recente Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre, Kassé coordenou uma equipe de jornalistas responsáveis pela edição diária de um tablóide de oito páginas, com edição em francês, inglês e português. Este jornal é o Chama da África (Flamme d’Afrique e African Flame) [www.panos-ao.org/fsm/index.html, em francês e inglês] e está completando seu primeiro aniversário.
Lançado em janeiro de 2004, no FSM de Mumbai (Índia), o jornal busca dar maior visibilidade à participação africana nestes eventos internacionais altermundistas, colocando em destaque idéias e esperanças do continente num ‘outro mundo possível’. A iniciativa de lançar o Flamme surgiu da parceria entre três ONGs: a Enda-Tiers Monde (www.enda.sn/index.htm), o Instituto Panos (www.panos.org.uk/)e o Women for Change (Mulheres pela Mudança, www.wfc.org.zm/). Os jornalistas que compõem a redação vêm de diversos países africanos. Além de produzir o jornal, a equipe atinge o público africano através de outros meios de comunicação, com destaque para as rádios comunitárias.
Escassa circulação
Neste ponto, Kassé, veterano jornalista senegalês, toma fôlego e se entusiasma, numa tarde de intenso calor, num dos cafés da Usina do Gasômetro, na capital gaúcha. Ali se concentravam mais de seis mil jornalistas dos cinco continentes. Para ele, as rádios FM e as rádios comunitárias são o meio de comunicação mais importante, hoje em dia, na África. Mas por que as FMs?
Kassé lembra a intervenção, no FSM, da responsável pelo comitê editorial do Instituto Panos, Diana Senghor. Além das elevadíssimas taxas de analfabetismo na África – apenas 30% das populações da África Ocidental sabem ler e escrever – e dos graves problemas de distribuição e circulação dos jornais, há mais obstáculos: ‘A África, ao que parece, não está sendo afetada pelo controle do mercado sobre a mídia’, disse ela.
É que os jornais africanos, em particular os da costa ocidental, são de escassa circulação, com tiragens que vão de, no máximo, 10 mil exemplares diários no Senegal a 1.000, no máximo 3 mil exemplares/dia em países mais pobres, como Burkina Fasso ou Mali. Kassé diz que muitos jornais nascem para morrer logo em seguida, até pelo alto preço do papel de imprensa, prejudicando a diversidade e a pluralidade de opinião. Um jornal, só para dar um exemplo, custa 50 centavos de dólar (cerca de um real e 30 centavos). Mas este é o mesmo preço de uma refeição na África.
O impacto das FMs
O interesse midiático africano volta-se, portanto, para as rádios, e seu florescimento rápido é o fenômeno mais importante a partir dos anos 90 do século passado. Só no Mali, um dos países mais pobres do continente, há 150 rádios FM, na maior parte rádios comunitárias, de alcance restrito, mas vitais para a informação e a comunicação entre os ouvintes-cidadãos.
E a TV? Kassé afirmou que os serviços de televisão no continente africano majoritariamente estatais. Além de difundir programação mais voltada ao entretenimento, o noticiário é vincado pela visão governista, nos diversos países. Além disso, a TV estatal do Senegal, por exemplo, cobre apenas 70% do território. Este fenômeno se repete nos outros países. A população busca, então, para informar-se em rádios como a Sud FM, lançada em 1994 em Dacar, e atinge todo o Senegal com sua programação.
O jornalista do Instituto Panos considera, mesmo, que é graças a essas rádios, espalhadas por toda a África, que hoje há eleições democráticas em diversos países do continente, com a participação de jornalistas na apuração das urnas e as denúncias dos ouvintes sobre eventuais fraudes. A partir do impacto midiático das FMs nas grandes cidades, o alcance das rádios comunitárias chega agora às vastas regiões do interior africano, com programação dedicada aos camponeses, favorecendo assim o surgimento de uma opinião pública. Essas FMs falam de problemas de meio ambiente, saúde, agricultura e questões locais e são extremamente populares. Daí sua importância para que, também na África, seja possível uma outra mídia, mais verídica e voltada para os interesses dos cidadãos.