Em artigo neste Observatório [‘O silêncio sobre as Comissões de Comunicação‘], a propósito de matéria publicada no Correio Braziliense em 15/2, comentei a omissão da mídia em relação aos vínculos de membros das Comissões de Comunicação com o setor de radiodifusão, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal.
Para avançar na compreensão das razões pelas quais a mídia impressa raramente aprofunda as questões relativas à mídia eletrônica (e vice-versa) é preciso relembrar uma das características principais do sistema brasileiro de mídia. Entre nós – ao contrário do que ocorre no resto do mundo – a ausência de regulação permitiu que os principais grupos de mídia se constituíssem e se consolidassem em torno da propriedade cruzada dos meios.
O que exatamente significa isto? A legislação brasileira permite a um mesmo grupo empresarial controlar, no mesmo mercado, não só concessões públicas de rádio (AM e FM) e televisão – aberta (VHF e/ou UHF) e/ou paga (cabo, MMDS ou DTH) – como também ser proprietário de jornais e/ou revistas e/ou portais de internet.
Além disso, a legislação não disciplina a formação de redes – de rádio e/ou de TV – permitindo a subordinação, de fato, de emissoras locais e regionais à programação de uma ‘cabeça de rede’ nacional. E mais: a legislação não protege o produtor de conteúdo (jornalístico e/ou audiovisual) independente e permite que os grandes grupos de mídia mantenham sob seu controle oligopolistico também a produção de conteúdo.
Excrescência celebrada
Foi essa ausência de regulação que possibilitou, por exemplo, a formação dos dois maiores conglomerados da história da mídia brasileira: os Diários Associados e as Organizações Globo. Ambos são emblemáticos da propriedade cruzada que se estende por todo território nacional em aliança com as oligarquias políticas regionais.
O Correio Braziliense é um dos principais jornais dos Diários Associados – que foi, em passado não tão distante, ‘o maior império de comunicações da América Latina’.
Os Associados começaram com a aquisição de um pequeno jornal no Rio de Janeiro e rapidamente o grupo se expandiu não só para outros jornais, como para as revistas, o rádio e a televisão. No final da década de 1950 havia se transformado num conglomerado de ‘quarenta jornais e revistas, mais de vinte estações de rádio, quase uma dezena de estações de televisão, uma agência de notícias e uma empresa de propaganda’. E ainda ‘um castelo na Normandia, nove fazendas produtivas espalhadas por quatro estados brasileiros, indústrias químicas e laboratórios farmacêuticos’.
Quando completaram 80 anos – em outubro de 2004 – embora longe da grandeza que tiveram na metade do século passado, os Associados fizeram publicar anúncio de página inteira em seus jornais que dizia:
‘Em 1924, ao publicar a 1ª edição de O Jornal, Assis Chateaubriand dava início ao que é hoje um dos mais importantes grupos de comunicação brasileiro. Atualmente, os Associados agrupam 37 empresas de diversos segmentos: jornais, emissoras de TV, rádios, portais de internet e uma Fundação.’
No sistema brasileiro de mídia é assim. A propriedade cruzada não só está na raiz da formação e consolidação dos principais grupos, tanto nacionais como regionais, mas é inclusive celebrada em anúncios de datas comemorativas como prova de grandeza e sucesso.
Mobilização social
É dentro desse contexto que a cobertura – ou sua ausência – de questões relativas ao controle de concessões públicas de radiodifusão por deputados e senadores tem que ser compreendida. Eventualmente essas questões podem envolver empresas de radiodifusão do mesmo grupo proprietário do jornal e/ou da revista.
Essa realidade faz aumentar ainda mais a urgência da construção democrática de um projeto de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa. Não sejamos ingênuos, todavia. Corremos o risco muito concreto de que uma Lei Geral seja aprovada no Congresso e não resolva essas questões. Por quê?
Concessionários e proprietários – e seus aliados – estão historicamente muito bem representados não só nas Comissões de Comunicação da Câmara e do Senado, mas também no conjunto das duas Casas do Legislativo (há estimativas de que cerca de 100 parlamentares do ‘novo’ Congresso teriam interesses diretos ou indiretos na radidiofusão). Alguns são, eles próprios, parlamentares.
Além de atores políticos poderosos, eles têm o poder de alterar a regulação do setor, inclusive da propriedade cruzada. Ademais, estão em condições de exercer, através da mídia que controlam, uma influência comparativamente diferenciada na formação da opinião pública que, afinal, pode eleger senadores, deputados e perpetuar circularmente a perversão do sistema.
Resta a expectativa de uma distante, mas sempre possível mobilização da sociedade civil. Ela funcionaria como grupo de pressão legítimo e democrático junto ao Congresso Nacional no interesse público. Afinal, até mesmo seus concessionários e proprietários admitem a centralidade e a importância fundamental da mídia nas democracias contemporâneas. Inclusive na brasileira.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)