O Ministério da Cultura (MinC) apresentou no último dia 23 de março suas propostas de revisão da Lei Federal de Incentivo à Cultura (8.313/91), conhecida como Lei Rouanet. Prometida há cinco anos, o projeto foi alvo de enorme expectativa, sobretudo pelos defensores de maior eqüidade nas políticas de financiamento da cultura no país. Como já era esperado, assim que foi divulgada, a proposta passou a ser alvo de críticas por alguns representantes do setor do mainstream artístico nacional.
A novidade agora é a origem dos questionamentos, oriundos não mais apenas dos tradicionais setores famosos por rotular qualquer qualificação da participação do Estado ou da sociedade na gestão dos recursos para a área como ‘dirigismo cultural’. Pensadores e ativistas comprometidos com a democratização do setor também avaliam que há fragilidades e limites no texto apresentado pelo MinC.
Na defesa do projeto, o ministro da cultura, Juca Ferreira, costuma atacar a concentração de recursos em grandes produtores e as disparidades regionais nos investimentos realizados via Lei Rouanet. Mas, para agentes do setor ouvidos pelo Observatório do Direito à Comunicação, o que é vendido como uma grande virada na política de financiamento cultural, na prática, não traz alterações radicais no modelo, embora tente moralizar os consagrados mecanismos de renúncia fiscal.
A proposta do MinC prevê a substituição dos percentuais fixos de renúncia, de 30% e de 100%, para índices variáveis de 30%, 60%, 70%, 80%, 90% e 100%, que serão definidos por uma comissão com participação de representantes da sociedade. Contudo, não altera a predominância da lógica consagrada pela Lei Rouanet, na qual as empresas podem optar pelo investimento em iniciativas culturais em troca de isenção do pagamento de impostos.
Essência mantida
Alguns críticos questionam o modelo por ser baseado na gestão privada de recursos públicos, acabando por privilegiar os investimentos de empresas em projetos voltados à promoção de suas marcas, como grandes espetáculos. A conseqüência é a concentração dos recursos em produções de alto custo no eixo Rio-São Paulo, enquanto uma parcela reduzida das verbas incentivadas é disputada por projetos de médio porte em outras regiões, sem falar naquelas iniciativas que sequer conseguem acessar o mecanismo.
‘Os ajustes que estão sendo feitos são sobre uma base errada, porque não mudam o principio básico’, afirma Sharon Hess, diretora-geral da agência Articultura. ‘Trata-se de repasse de dinheiro público com critérios privados, e isso fere qualquer princípio republicano’, emenda. A crítica é compartilhada pelo diretor de teatro Pedro Pires, da Companhia do Feijão. ‘Somos pela extinção desta política de renúncia fiscal’, diz. ‘Mas já sabemos por experiência própria que, se não houver políticas públicas, ficaremos nas mãos do governante de plantão.’
Para Leonardo Brant, editor do site especializado Cultura e Mercado, é preocupante a forma como a equipe do MinC conduziu o debate até a formulação da proposta. ‘Tudo bem começar do zero, se fosse um projeto que alterasse a lógica da predominância do financiamento privado à cultura’, diz. Mas, ao contrário, o texto ‘mantém a lógica e apenas transfere o poder [de definição sob o destino dos recursos] para o governo’, conclui.
A despeito das reticências, há um reconhecimento de que o texto consegue, ao menos, moralizar em alguma medida a distribuição desses recursos, mas nada que se compare às pretensões sugeridas anteriormente por dirigentes da pasta. Segundo Sharon Hess, já havia um diagnóstico correto na gestão de Gilberto Gil sobre os limites da Lei Rouanet. ‘Não mudou nada de lá para cá. Isso poderia ter sido enfrentado lá no começo’, lamenta.
Critérios públicos
Um dos limites apontados na proposta é a falta de clareza nos artigos que tratam dos novos critérios para a definição do índice de renúncia fiscal que um patrocinador pode se valer para financiar um projeto cultural. ‘É preciso saber quais são os critérios para distribuir o dinheiro. Eles não estão estabelecidos e devem estar regidos por uma política pública que não existe’, afirma Sharon. ‘Ainda não existe um plano estratégico, racional e detalhado. Tenho receio se ele vai funcionar sem regras.’
A grande novidade em relação aos critérios é a criação de uma Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, que decidiria sobre o destino dos recursos a fundo perdido e estabeleceria os critérios para a captação de recursos incentivados. O órgão é considerado um avanço, mas que ainda se ressente de uma definição mais objetiva e que isole as alegações de supostas tentativas de ‘dirigismo cultural’.
‘Melhor que seja através de uma Comissão do que de um gabinete. Precisa haver critérios para a liberação de recursos’ acredita Geraldo Moraes, diretor de cinema e membro da Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural. ‘Se houvesse recurso para todo mundo não seria necessário, mas existe um funil. Agora a questão é discutir a composições deste órgão’, justifica.
Mesmo assim, a Comissão proposta, de composição paritária entre poder público e sociedade civil, já vem sendo alvo de ataques por parte dos grandes produtores e de atores consagrados. Na avaliação de Sharon Hess, a crítica ao dirigismo é mais um jogo que os atuais beneficiados fazem contra o estabelecimento de critérios públicos de financiamento. ‘Claro que queremos que a cultura seja livre, que haja liberdade de expressão. A questão é que o é dinheiro é público e limitado, portanto, haver regras é fundamental e isso não pode ser chamado de dirigismo’, explica.
Fundo
Mantida a essência do investimento por meio de incentivo fiscal com critérios ainda incertos, a democratização do acesso ao financiamento para a cultura dependeria de uma ampliação do volume de recursos públicos não incentivados. A solução da proposta do MinC é a racionalização do Fundo Nacional de Cultura, com sua divisão em seis fundos setoriais, mas ainda com perspectivas reduzidas de novos recursos.
Geraldo Moraes acredita que a Lei Rouanet foi importante em certo momento devido à ausência de investimentos no governo Collor, mas não conseguiu, de fato, gerar uma política pública de investimento na cultura. ‘O empresário está mais interessado em que funcione o seu supermercado, o resultado cultural é secundário. Por isso acho que a idéia dos fundos é importante’, avalia. ‘É preciso criar um mecanismo que não seja tão dependente de departamentos de marketing e que não torne a arte um supérfluo de outra atividade’, defende.
Para Moraes, ‘é válida e necessária a proposta dos fundos, e também das faixas de renúncia. A partir daí a discussão passa a ser se eles são suficientes.’ Para que o atual formato seja melhorado, é preciso que o Ministério e o Congresso Nacional, onde o projeto irá tramitar, estejam abertos à opinião dos interessados na questão. ‘A participação da sociedade é fundamental neste sentido. Cada setor passa ser importante e precisa ser ouvido’, diz.
Na opinião de Sharon Hess, o centro da reforma proposta pelo MinC deveria ser o fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura, que sofre com a escassez de recursos. ‘A pauta do discurso do governo está errada, porque se baseia na mudança da Lei Rouanet e não na valorização do Fundo’, afirma.
Manifestações menos privilegiadas
Pedro Pires é cético em relação às alterações propostas pelo MinC. Para ele, é preciso pensar as políticas culturais de maneira estrutural e como garantidora da continuidade do trabalho artístico, que não estaria contemplada pelo novo texto. ‘Da parte dos grupos, essa nova lei não traz nada de concreto. Não significa uma grande mudança’, pontua.
As companhias de teatro experimental estão entre os setores que não conseguem facilmente financiamento via Lei Rouanet. ‘O fato é que a maior parte dos recursos fica nas mãos de poucos, é uma política de exclusão. As empresas estão preocupadas com a divulgação das marcas, e o que dá mais retorno de imagem é ator da Globo, a indústria cultural. A questão é que a arte não cabe na lógica do mercado, ela pertence a outra esfera, ou então vira simplesmente linha de montagem’, analisa.
Ousadia para mudar
Se a gestão de Gilberto Gil à frente do ministério é elogiada por levantar debates importantes, muitas de suas aspirações não puderam ser efetivadas. Esperava-se, então, que seu sucessor levasse a cabo as agendas inconclusas da política defendida pelo ex-ministro. Na avaliação de Sharon Hess, faltou habilidade política por parte dos dirigentes da pasta. ‘Toda vez que o ministério propõe mudanças, os atuais beneficiados chiam’, comenta.
‘Precisamos consolidar o programa Cultura Viva, as políticas audiovisuais. A Política de Gil é muito ousada. Parece que tudo está perdido, mas não está. Ainda há tempo de consolidar alguma coisa’ espera Leonardo Brant. ‘Precisamos recolher e preparar o contra-ataque, que se dará na sociedade civil e não no governo’, defende.
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Do Observatório do Direito à Comunicação