Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Regras mais claras, lá e aqui

Uma poderosa conjunção astral atraiu dois eventos distintos de países vizinhos para convergir na mesma época. Embora sejam episódios particulares, dialogam entre si e vão impactar pessoas e organizações num plano comum. Por isso, é possível afirmar que haja uma ligação entre uma decisão da Suprema Corte argentina na semana passada e o resultado de uma votação no Congresso Nacional brasileiro nos próximos dias. Cada uma, a seu tempo e com seu escopo, pode redesenhar o mapa das comunicações em seu país e trazer à tona regras mais claras para o setor.

Na terça-feira (29/10), a Corte Suprema de Justiça argentina declarou que a polêmica Lei de Meios é constitucional, colocando um ponto final a uma batalha nos tribunais que se arrastava há quatro anos. Proposta pela presidente Cristina Kirchner, a lei foi aprovada pelo parlamento, mas foi contestada pelo maior conglomerado de mídia do país, o Grupo Clarín. Também pudera, a lei limita número de concessões de radiodifusão e ataca frontalmente oligopólios.

O Clarín era um aliado de primeira hora dos Kirchner, mas a lua-de-mel terminou quando alguns de seus interesses na área agrícola foram contrariados por medidas do governo. A partir de então, as relações esfriaram e os veículos do conglomerado midiático ofereceram à presidente uma resistência que nem mesmo a oposição fora capaz. O movimento de Cristina com uma lei que afetava o tamanho e a composição dos grupos do setor foi recebida como uma ofensiva contra a liberdade de expressão, a possibilidade de crítica e a fiscalização dos poderes. Foi como jogar gasolina para apagar a fogueira.

Iniciativa inédita

Aprovada em 2009, a Lei de Meios foi rechaçada pelo Clarín, por alguns concorrentes e até mesmo por aliados de outros países, como as Organizações Globo, que empenharam parte de sua cobertura noticiosa para apavorar o público com as medidas censoras da presidente argentina. O Clarín apelou na justiça contra quatro artigos da lei e a queda de braço se estendeu até a corte mais alta do país. A decisão da semana passada obriga os conglomerados a se adequarem aos limites das concessões, e o maior grupo de mídia vai precisar se desfazer de dezenas de licenças de TV a cabo, por exemplo, encolhendo de uma maneira nunca vista.

A Lei de Meios, agora com possibilidade real de implantação, vai redesenhar o mapa argentino das comunicações, mas é preciso atentar para um aspecto muito importante: a criação de novas regras apenas não garante que haja uma reconfiguração efetiva no setor. A mesma lei prevê uma complementaridade no sistema de radiodifusão entre governos, empresas e sociedade civil, cada um deles com um terço das licenças. A “retirada” de concessões dos grandes grupos não assegura que outros titulares tenham qualidade técnica, sustentação financeira e condições operacionais de atuar com o mesmo nível de satisfação dos anteriores.

É preciso ainda que o governo lance linhas de financiamento para pequenos grupos que queiram entrar no mercado, que pulverize as verbas publicitárias de forma a alcançar esses novos players e que crie regras complementares que mantenham um ambiente estável para que os novatos sobrevivam.

Embora haja grandes chances de a Argentina promover uma democratização das comunicações – algo inédito na América do Sul e bastante raro em outras partes do mundo –, este processo está apenas nos seus primeiros passos, sendo necessário adotar tais movimentos como decisões de Estado e não apenas de governos, haja vista que Cristina Kirchner não deve permanecer na Casa Rosada por toda a eternidade.

Passo importante

No Brasil, estamos muito distantes de contar com um governo que insinue uma política efetivamente democratizante das comunicações. Por aqui, licenças e outorgas de radiodifusão são praticamente infinitas, já que se renovam quase que automaticamente, têm a cumplicidade do Estado e quase nenhuma fiscalização das agências reguladoras. No entanto, um importante movimento pode ser dar finalmente no país com a votação no Congresso Nacional do Marco Civil da Internet.

Pelo menos desde 2011, setores organizados da sociedade discutem as bases para o que deve funcionar como uma Constituição para internautas, empresas, governos e todos aqueles que se conectam. Polêmica, a proposta reafirma princípios como o da neutralidade de rede, a privacidade e a guarda dos dados dos usuários, o que contraria interesses de companhias telefônicas, de provedores de acesso, de empresas de tecnologia, que fazem pressão sobre os parlamentares. Não é à toa que o projeto foi a plenário pelo menos meia dúzia de vezes no ano passado e em todas elas teve sua votação adiada por falta de consenso. Líderes do governo sentiram que recuar era avançar e por isso retiraram o projeto da pauta até onde foi possível.

Em julho passado, com as denúncias dos atos de espionagem de agências norte-americanas à presidência da República e a empresas nacionais como a Petrobras, o Marco Civil passou a ser uma prioridade para o governo Dilma Rousseff. Assim, uma legislação para a internet ganhou uma importância concreta para assegurar direitos de usuários e para restringir ações de bisbilhoteiros. O Palácio do Planalto colocou o projeto em regime de urgência na Câmara dos Deputados, e a presidente usou a tribuna da Organização das Nações Unidas para defender o Marco Civil, uma governança mais democrática e responsável da internet em escala mundial e o fim da espionagem cibernética.

Na semana passada, o Marco Civil entrou novamente em pauta, e só não foi votado porque líderes da base aliada negociaram com outros líderes uma comissão geral, sessão parlamentar de debate público entre deputados e convidados, agendada para esta semana. O objetivo é reduzir as margens de dúvida sobre a proposta e aprová-la com a forma mais próxima do projeto original. Em setembro, o texto recebeu 34 emendas.

Em linhas gerais, o Marco Civil quer manter que a internet no país não priorize o tráfego de pacotes de informações conforme aspectos mercadológicos, que os dados pessoais dos usuários não sejam comercializados nem tornados públicos pelos provedores de serviço, que a rede promova a cultura, o desenvolvimento humano e social, e a inteligência coletiva.

A exemplo da Lei de Meios argentina, o Marco Civil – caso venha a ser aprovado e mantenha o espírito original – traz luz a setores cada vez mais estratégicos na sociedade, como é o caso das comunicações e da tecnologia informacional. Não chega a redesenhar o setor, como o faz a lei dos vizinhos, mas finca bandeiras importantes e sinaliza para o mundo que o país defende uma internet plural e social (e não majoritariamente comercial).

O Marco Civil não resolve o problema da espionagem contra governos e empresas, mas permite que surjam leis complementares que responsabilizem transgressores e que fermente um amplo debate sobre limites nacionais, soberania, respeito mútuo e privacidade pessoal em detrimento de ganhos financeiros. Pode ser um passo importante, tão relevante como discutir vencimento de concessões de radiodifusão e transferência de licenças de rádio.

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Rogério Christofoletti é jornalista, professor da UFSC e pesquisador do objETHOS