Vivemos um momento de singular importância no que se refere à legislação das comunicações. Propostas e projetos de lei de regulação encontram-se em discussão, tanto no âmbito do governo federal quanto no Congresso Nacional.
No governo federal, anuncia-se para os próximos dias a indicação dos membros que vão integrar o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), criado em abril, com a incumbência de preparar o anteprojeto de regulamentação dos artigos 221 e 222 da Constituição.
Excluiu-se deliberadamente da competência deste GTI a regulamentação dos artigos 220 e 223, exatamente aqueles que rezam ‘os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio’, e que tratam das outorgas de rádio e televisão, além de definir o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
Não creio que, ao excluir a regulamentação de questões decisivas para a configuração do setor, se possa chamar o resultado do trabalho desse GTI de projeto para uma Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa.
Por outro lado, a adoção de um modelo para a TV digital está sendo discutida por GT no Ministério das Comunicações e uma nova proposta para a radiodifusão comunitária vem sendo debatida por outro grupo interministerial. Ao mesmo tempo, existem dezenas de projetos de lei sobre o setor que tramitam nas duas casas do Congresso Nacional.
Construção simbólica
A constatação de que os grupos dominantes da grande mídia comercial sempre se recusaram a admitir qualquer avanço, por menor que seja, no sentido da democratização das comunicações e sempre conseguiram que seus interesses prevalecessem na regulação do setor, provoca, em momentos como o que atravessamos, um inevitável desalento.
Qual seria uma perspectiva realista para orientar a ação dos vários grupos organizados da sociedade civil que reivindicam pelo menos ser ouvidos na formulação das propostas em discussão?
A primeira e óbvia resposta a essa pergunta é que não se pode ingenuamente acreditar que a grande mídia, privada e comercial, um belo dia, passe a apoiar projetos de democratização da comunicação, isto é, abra espaço para a pluralidade e a diversidade de vozes de nossa sociedade. Isso não acontecerá.
Recentemente o jornalista francês Bernard Cassen considerou essa ‘crença’ uma ilusão fundamental daqueles que trabalham na perspectiva de que ‘um outro mundo é possível’ nas comunicações. Esta ilusão, aliás, é parte importante do problema. Na verdade, ainda é extremamente restrito o segmento da população que percebe, com a necessária clareza, o que está em jogo.
Tendo em vista a centralidade que ocupa nas sociedades contemporâneas, a mídia constitui-se hoje em locus privilegiado das disputas de poder. Seu papel mais importante decorre da capacidade que tem de ‘construir a realidade‘ através da representação dos diferentes aspectos da vida humana, sobretudo da representação da própria política e dos políticos. É através da mídia que a política é construída simbolicamente – e que adquire significado.
Trata-se, portanto, de uma questão de poder e nenhum ator político cede poder voluntariamente.
Percepção necessária
O Poder Executivo brasileiro – neste e em outros governos – não teve/tem forças para confrontar os grupos dominantes de mídia privados, eles próprios poderosos atores econômicos e políticos. Ao contrário, deles depende e se vê na contingência de com eles negociar não só as propostas de políticas públicas de comunicações, mas, inclusive, propostas em outras áreas (economia, educação, esportes, cultura etc. etc.).
Ademais, não se pode esquecer que os atores que exercem o controle do poder político somente são sensíveis a demandas que se expressem de forma organizada e representem potencialmente uma ameaça à sua permanência no poder. Por exemplo: ocorreram recentemente duas marchas a Brasília de setores organizados da sociedade civil interessados na reforma agrária: MST e Contag. O Executivo, diante da demanda organizada, viu-se obrigado a negociar e atender a várias reivindicações desses movimentos.
Há alguma possibilidade de termos uma marcha a Brasília de movimentos sociais organizados da sociedade civil brasileira reivindicando a democratização das comunicações?
Ao contrário de setores como saúde, habitação e educação, por exemplo, as comunicações não são percebidas pela imensa maioria da população como um direito humano básico. E mais: não se percebe como o controle da mídia pode determinar o próprio controle do poder político.
Desta forma, uma das tarefas claras dos segmentos interessados na democratização da comunicação é trabalhar no sentido de ampliar a consciência coletiva da importância crítica do setor para a democracia. E uma estratégia prioritária de curto prazo seria o fortalecimento dos sistemas público e estatal de comunicações e de projetos de mídia alternativa.
Um dia ainda teremos as políticas públicas de comunicações percebidas pela maioria da população como as políticas públicas de setores como saúde, habitação e educação. Até lá, os interesses dos grandes grupos privados de mídia continuarão a prevalecer na regulação das comunicações.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)