Cerca de 25 anos antes da promulgação da atual Constituição Federal, a radiodifusão brasileira ganhou seu arranjo institucional definitivo com a aprovação do Código Brasileiro de Telecomunicações e a publicação dos dois decretos que o regulamentaram, o 52.795 e 52.026. Tudo isto, em 1963. As normas reafirmaram o modelo já estabelecido 30 anos atrás, baseado na exploração privada dos serviços de rádio e TV a partir de outorgas concedidas pelo Estado. Com base neste ambiente normativo, as duas mídias desenvolveram-se no Brasil como meios predominantemente comerciais.
O CBT e suas regulamentações estabeleceram os tipos de outorga (concessão, permissão e autorização), seu prazo (15 anos para TV e 10 para rádio) e o órgão com prerrogativa para sua aprovação e renovação (a Presidência da República, a partir de indicação do Conselho Nacional de Telecomunicações, que em 1967 seria incorporado pelo Ministério das Comunicações). Os textos também elencaram as obrigações que deveriam ser cumpridas pelos concessionários, inclusive para a obtenção da renovação: a veiculação de um mínimo de 5% de conteúdo noticioso, máximo de 25% do tempo de anúncios publicitários e pelo menos 5 horas de programação educativa; a transmissão da propaganda eleitoral e partidária e da ‘Voz do Brasil’, no caso do rádio, e a cessão de espaço para a formação de rede nacional quando solicitada pelo governo federal.
Um quarto de século depois, o capítulo Da Comunicação Social da Constituição Federal viria a consagrar alguns destes princípios e inovar em outros. Para Armando Rollemberg, jornalista da TV Senado e presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) à época, o resultado final foi uma demonstração do poderio do empresariado de mídia. ‘Nós, como movimento representativo da sociedade, por mais dinâmico e organizado que fôssemos, não tínhamos poder de interferir frente ao peso da Abert e ANJ, que atuaram fortemente. Isso se consumou na manutenção do status quo, especialmente nos artigos referentes às concessões.’
Condições assimétricas
Na avaliação do professor Venício Lima, o êxito dos interesses comerciais do setor se consolidou nas ‘condições assimétricas em relação às concessões de outros serviço público que a radiodifusão tem em relação à não renovação e ao cancelamento’. A Constituição de 88 estabeleceu que a cassação de outorgas só poderia se dar por decisão judicial e estabeleceu um procedimento que praticamente garante a renovação das licenças, ao prever o quórum de dois quintos dos parlamentares do Congresso em votação nominal para a não renovação.
‘Por ele [o Artigo 223], as concessões tornam-se perenes. Ou alguém neste país acredita que algum parlamentar dirá em alto e bom som que determinada concessão não deve ser renovada?’, indaga Lalo Leal Filho, ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). ‘Se o fizesse passaria a enfrentar a ira eterna das emissoras que o condenariam ao ostracismo e à morte política. Foi um grande retrocesso.’ Um dos motivos para esta improbabilidade é a fragilidade das exigências previstas na própria Constituição e em outras leis e a ausência total de fiscalização daquelas que existem.
Obrigações esquecidas
A Carta Magna proíbe a prática de monopólio e oligopólio (Art. 220) e exige que a programação seja preferencialmente voltada para finalidades educativas, culturais, artísticas e jornalísticas, bem como promova a produção independente e regionalizada (Art. 221). Como as demais obrigações da legislação infra-constitucional, nenhuma delas têm sido avaliadas.
Em 2007, por ocasião do vencimento de várias concessões de redes importantes como Globo, Record e Bandeirantes, a Casa Civil chegou a solicitar ao Ministério das Comunicações a comprovação documental do cumprimento dos mínimos e máximos referentes à programação, bem como o respeito aos princípios constitucionais elencados anteriormente. Após a reclamação do ministério de que tal verificação seria inviável e ampla demais, a Casa Civil recuou e retirou o pedido.
A argumentação da pasta comandada por Hélio Costa baseia-se na alegação da falta de clareza acerca dos critérios. Para o professor Murilo Ramos, coordenador do Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília (Lapcom-UnB), uma das questões que sustenta o argumento do Minicom é a total obscuridade do contrato celebrado entre o Estado brasileiro e os concessionários. ‘Quem conhecee um contrato destes? Quais obrigações ele estabelece?’, questiona.
Os contratos são armazenados pelo Tribunal de Contas da União, sendo publico no Diário Oficial apenas um extrato. No entanto, a assessoria do TCU informou que eles só podem ser publicizados em caso de processo judicial. ‘Os atos de assinatura dos contratos das demais áreas são formais. Comparece todo mundo, inclusive a imprensa. Já os contratos de rádio e TV ninguém nunca viu’, reforça o pesquisador e consultor Israel Bayma, fazendo referência à diferença brutal entre a transparência dos contratos de radiodifusão com os de telecomunicações.
Renovação automática
Agrava o quadro de renovação automática a manutenção de um mecanismo do Decreto 88.066, de 1983, que permite à concessionária continuar funcionando em caráter precário mesmo com sua outorga vencida desde que tenha entrado com o pedido de renovação no Executivo. Tal dispositivo permitiu chegar à absurda situação de o Ministério das Comunicações arquivar 184 processos de renovação por terem demorado mais para serem definidos do que o tempo da própria outorga que deveriam renovar.
O absurdo arquivamento dos pedidos evidencia a lentidão da tramitação dos processos. Segundo relatório parcial da sub-comissão criada para discutir os procedimentos de concessão de outorgas para rádio e televisão, uma licença de FM leva em média 7,2 anos para ser aprovada, sendo 6,5 em exame no Executivo e 0,7 no Legislativo. Embora a Constituição tenha alongado o procedimento, incluindo o Congresso na análise dos projetos de outorga e renovação, isso não pode ser aventado como justificativa uma vez que a principal demora está na fase de análise no Executivo.
Congresso entra no circuito
A inclusão do Congresso como validador da aprovação das licenças era vista à época como uma conquista, uma vez que a concentração do poder nas mãos apenas do presidente da República permitia o uso das outorgas como moeda de troca política. O próprio período da Constituinte foi um dos casos mais explícitos desta prática.
Entre março de 1985 e outubro de 1988, o governo Sarney distribuiu 1.028 outorgas, sendo 25% delas no mês de setembro de 1988, antes da Constituição. As evidências apontam que, com isso, o então presidente garantiu para si um mandato de 5 anos. Seis dias antes da promulgação da Carta Magna, o Diário Oficial trouxe a publicação de 59 outorgas.
Segundo Venício Lima, tal inovação foi ‘um tiro no pé’. ‘O que acontece é que a demanda política de que este poder [de controlar as licenças] fosse compartilhado com o Legislativo não levou em conta que, na tradição brasileira que já existia naquela época, os grandes beneficiários desta prática política eram as elites políticas locais e regionais que estavam direta e indiretamente representadas no Congresso’, explica.
Relações promíscuas entre mídia e política
A partir deste momento, os parlamentares, muitos já envolvidos no jogo de barganha política utilizando as concessões, trocaram de lado do balcão: passaram a ser os definidores do destino destas outorgas. O resultado foi a ocupação da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) por parlamentares donos de emissoras ou interessados no tema.
Há casos em que parlamentares votaram na renovação de sua própriaa concessões. Em 2003, dois deles vieram à tona. Em uma reunião da CCTCI em abril daquele ano, Nelson Proença (PPS-RS) participou da aprovação da renovação da Rádio Emissoras Ltda, de Alegrete (RS), da qual era sócio-proprietário da emissora. Corauci Sobrinho (DEM-SP), em junho daquele ano, repetiu o feito em relação à Rádio Renascença, de Ribeirão Preto (SP), em cujo quadro diretor estava o seu nome.
A conseqüência deste fenômeno é a apropriação da mídia pelos políticos. Segundo dados da pesquisadora Suzy dos Santos, há 128 geradoras e 1.765 retransmissoras de TV nas mãos de políticos. Os estados com maior número são o Paraná, com 15, Minas Gerais e São Paulo, com 13, e Goiás, com 10. Quando observado o índice por região, a maior ocorrência de parlamentares donos de veículos está no Nordeste, que possui 44 representantes legislativos-radiodifusores, seguido de longe pelo sudeste, com 18.
Frente à continuidade deste tipo de prática, houve uma segunda dita tentativa de moralização com a publicação dos Decretos 1.720, de 1995, e 2.106, de 1996. As duas normas passaram a prever licitação para a concessão de outorgas comerciais, excluindo as permissões para educativas. Segundo aponta estudo recente do pesquisador Cristiano Lopes Aguiar, as decretos ‘moralizadores’ fizeram com que, no lugar de uma avaliação de mérito dos projetos para ocupação dos canais, apenas o preço pago pela licença seja o definidor das licitações. O resultado tem sido a concentração de novas outorgas nas mãos de empresários que já estão atuando no setor.
Ao mesmo tempo, ao livrarem as emissoras educativas dos processos de licitação, os decretos fizeram migrar a farra das concessões. ‘No fundo, esta medida transferiu o coronelismo eletrônico para as emissoras educativas, que continuaram sem licitação, e aprofundou a concentração ao privilegiar o poder econômico na escolha dos canais’, diz Beatriz Barbosa, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
A avaliação é confirmada por reportagens como a da jornalista Elvira Lobato, da ‘Folha de São Paulo’, que revelaram como tanto no governo Fernando Henrique Cardoso quanto na gestão de Luis Inácio Lula da Silva houve considerável distribuição de licenças de educativas para políticos. Entre 1999 e 2002, o então ministro tucano das comunicações Pimenta da Veiga destinou 23 das 100 outorgas concedidas a grupos ligados a representantes eleitos. Nova matéria da jornalista em junho de 2006 revelou que ao menos 33% das 110 emissoras educativas aprovadas foram parar direta ou indiretamente nas mãos de políticos.
O mesmo tem ocorrido com as licenças para as rádios comunitárias. Estudo recente de Cristiano Lopes Aguiar em parceria com o professor Venício Lima revelou a gravidade da situação. Segundo a pesquisa, pelo menos 50% das 2.205 autorizações dadas a rádios comunitárias entre 1999 e 2004 estão sob controle de grupos partidários. Ela mostrou também que o cenário é nacionalizado: os cinco estados com maior incidência de políticos por trás de rádios comunitárias foram Tocantins, Amazonas, Santa Catarina, Espírito Santo e Alagoas.
Mudar o quadro ‘sem-lei’
A partir da avaliação crítica deste quadro, e por ocasião do vencimento de importantes outorgas em outubro de 2007, diversas entidades lançaram no ano passado a campanha Quem Manda é Você – por democracia e transparência nas concessões de rádio e TV. O Ministério das Comunicações não respondeu às solicitações da campanha. E, diferente de seu comportamento médio, encaminhou em menos de um ano os projetos de renovação das emissoras da Rede Globo ao Congresso.
Na Câmara, as entidades da sociedade civil vêm atuando para que a averiguação seja feita incorporando processos democráticos de avaliação e consulta à sociedade. Lograram, até agora, que as comissões de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) e de Legislação Participativa (CLP) aprovaram pedidos de audiência pública para debater o assunto.
No entanto, o que é um procedimento usual na definição dos concessionários de serviço público pode tornar-se uma conquista suada. As resistências já começaram a ecoar dentro do Parlamento, evidenciando a postura refratária dos representantes dos interesses da radiodifusão a qualquer tipo de debate público sobre sua atuação. ‘Será um momento histórico colocar a sociedade para discutir a renovação de outorgas, mas para isso precisamos de apoio dos deputados e mobilização da sociedade’, diz a deputada Luiza Erundina (PSB-SP).
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Do Observatório do Direito à Comunicação