Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

A relação sadomasoquista do brasileiro com seus políticos

Em uma democracia plena, o poder (kratía, em grego) é exercido com o intuito de beneficiar o povo (dêmos, também em grego). Como não há um sistema perfeito, as leis precisam ser aperfeiçoadas continuamente para garantir os direitos dos cidadãos, bem como para que haja justiça dentro da sociedade.

Em uma oligarquia, na qual o governo é exercido por um grupo ou por famílias, mesmo que haja uma parcela significativa da população a lhe dar respaldo, haverá o predomínio dos interesses que garantem a continuidade no poder àqueles que o detém.

Desde a eleição indireta de Tancredo Neves, em 1985, o Brasil vive a sua versão de democracia. A Constituição Federal de 1988 e suas leis complementares e subordinadas têm sofrido constantes alterações, o que estaria de pleno acordo com o exercício parlamentar democrático; contudo, a quem essas modificações beneficiam?

Leis criadas ou reformuladas para favorecer um grupo político ou econômico estão em desacordo com os interesses do povo. O mais recente exemplo é a Lei 13.332/2016, sancionada na sexta-feira, 2 de setembro, pelo presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ) no exercício da Presidência da República. O texto versa a respeito de abrandar as regras para abertura de créditos suplementares, ou seja, autoriza um reforço a uma despesa prevista na lei orçamentária, sem que haja a necessidade de autorização do Congresso Nacional. Na prática, torna legal o que foi considerado crime pela maioria dos senadores no julgamento político que causou o impedimento do mandato de Dilma Rousseff em 31 de agosto.

A abertura de créditos suplementares tornou-se conhecida da população com o midiático nome de “pedalada fiscal”. Aquilo que serviu de base para o argumento para interromper o mandato presidencial de Dilma Rousseff passa a ser tratado com mais tolerância. Levianamente, em discursos nas casas legislativas, muitos deputados federais e senadores acusaram afervoradamente a presidente de roubar os cofres da nação ao utilizar os créditos suplementares para gerir o orçamento, pois, agora, os mesmos indignados pró-impedimento são coniventes com a prática que antes condenavam.

Verdade seja dita que o projeto que gerou a Lei 13.332/2016 foi elaborado ainda na gestão Dilma Rousseff. O intuito era aumentar o limite de abertura de créditos suplementares de 10% para 20%; contudo, nem a presidente de então, nem renomados professores universitários de direito tributário consideram a prática criminosa. A hipocrisia parlamentar está no favorecimento para o governo de Michel Temer de um artifício até então tido como ilegal pelos congressistas que o beneficiaram.

Ora, os mesmos senadores convictos de que a abertura de créditos suplementares é um ato criminoso, não podem – dias depois de tirar o mandato de uma presidente eleita democraticamente sob a alegação de ter cometido crime contra a Constituição Federal – modificar as regras do jogo para beneficiarem o governante com o qual articularam a derrubada de sua antecedente.

A isso se dá um nome: hipocrisia. Qualquer pessoa que condenasse publicamente a ação de um desafeto, mas que fosse conivente com a mesma prática de um aliado seria considerado um hipócrita. Não pode ser diferente com os excelentíssimos senadores federais. Pois, a hipocrisia é uma das ferramentas de manipulação usadas em uma oligarquia, mesmo quando ela tenta se travestir de uma democracia fajuta com direito à complacência do Supremo Tribunal Federal.

O ciclo de euforia e dor do eleitorado

O investidor norte-americano James Dale Davidson é autor de uma das melhores definições para o regime democrático. Diz ele: “Democracia é a forma de governo em que todos têm o que a maioria merece”. O brasileiro tem uma estranha relação sadomasoquista com a classe política, pois elege os seus algozes a partir de uma escolha de quem lhe causará menos mal. Após semanas de discussões acaloradas, de defesas ferrenhas de projetos eleitorais que nunca são integralmente cumpridos, de trocas de acusações de quem é mais ou menos corrupto, há um breve período de celebração para a vitória dos eleitos e de espezinhamento dos derrotados; no entanto, logo se percebe que as verbas prometidas em campanha precisam ser revertidas para outra finalidade, que as áreas mais carentes não poderão ser melhoradas conforme o esperado – sem entrar em maiores detalhes a respeito dos desvios de finalidades e de verbas públicas por parte de servidores que deveriam trabalhar em prol da população. Governantes de direita, de centro e de esquerda têm repetido essa história nos municípios, nos estados, no Distrito Federal e na presidência da república, completando esse ciclo de euforia e dor que acompanha o eleitorado brasileiro.

Desestimulado e descrente da ação dos seus representantes nos poderes executivo e legislativo, nem a obrigatoriedade do voto tem surtido tanto efeito na hora de levar o eleitorado ao pleito. No segundo turno das eleições presidenciais de 2014, por exemplo, 21,10% dos eleitores não compareceram às sessões eleitorais. A esse elevado número ainda se somam os 6,34% de cidadãos que votaram em branco ou que anularam o voto. No montante total, 27,7% dos eleitores brasileiros se omitiram da importante escolha de quem governaria o Brasil até 2018.

O tempo verbal está correto: governaria. O fenômeno perverso da abstenção no sistema eleitoral proporcional para o Legislativo é que os candidatos e os partidos precisam de menos votos para atingir o quociente eleitoral, e, com isso, eleger os ocupantes das cadeiras. O resultado é que temos um Congresso Nacional bastante conservador, com diversos deputados e senadores envolvidos em denúncias de corrupção, que cria e modifica leis com a intenção de se proteger e se garantir no poder em vez de atuar para o aprimoramento da democracia em defesa dos interesses do povo.

Nessa estranha relação sadomasoquista do brasileiro com os seus políticos, os discursos odientos ganham tons mais exasperados e obtusos, enquanto o eleitorado passa a se assemelhar com o que há de pior em qualquer tipo de fanatismo. Se uma grande parcela da população brasileira insistir em seguir uma dicotomia limitadora e não esclarecida que opõe esquerda e direita, corremos o sério risco de vermos um partido sem direção nenhuma, que se alia a qualquer um que estiver no poder para dele se beneficiar, que age com oportunismo e deslealdade a comandar o país por mais alguns anos. Essa é a receita que alguns querem seguir para sustentar uma oligarquia desonesta que se disfarça em uma democracia fajuta em tempos em que é tão importante manter as aparências.

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Pablo Antunes é psicólogo e escritor. Publica o blog LiteromaQuia ( https://literomaquia.blogspot.com ).