Na década de 1980, como chefe da sucursal da Editora Abril em Porto Alegre, tive o privilégio de trabalhar com a menor e certamente mais talentosa equipe de fotografia da imprensa brasileira. Na cobertura de revistas como Veja, Placar, Quatro Rodas, Exame e outras, eu comandava um dream team integrado simplesmente por Ricardo Chaves, Leonid Streliaev, JB Scalco e Olívio Lamas.
Mais do que fotógrafos talentosos, eram repórteres de faro aguçado, olhar atento, visão privilegiada, o que tornava o trabalho dos repórteres de texto bem mais produtivo e gratificante.
Lamas fazia parte desse quarteto fantástico. Com sua barba negra de pirata do Caribe e olhar de águia, ajudava a enfrentar, com coragem e talento, as armadilhas e tensões daqueles anos de chumbo, semeados de censura, repressão e violência. Mas a presença sempre firme de Lamas nos ajudava a atropelar o medo. Seu clic firme ultrapassava qualquer restrição. O talento puro justificava todo o espaço e impacto da foto.
Lamas nunca negava fogo. Lamas sempre iluminava o breu. Foi dele, só para contar uma história das muitas que ele produziu, a foto da agente do Dops que, em 1978, guardou algumas horas os filhos da uruguaia Lilian Celiberti, seqüestrada pela Operação Condor em Porto Alegre, numa suja sociedade repressiva entre Brasil e Uruguai. A agente Elenira não permitiu foto em seu apartamento. Saímos de lá frustrados. Mas Lamas não se conformou: deu a volta no prédio e, da calçada, mirou sua tele para o balcão do primeiro andar, antes de berrar: ‘Lenira!!!’ O truque, banal, funcionou. A policial botou a cara na janela e, clic, Lamas pegou a foto, uma única foto. Com ela, o garoto Camilo, filho de Lilian, acabaria reconhecendo no Uruguai a funcionária do Dops, ajudando a desvendar o seqüestro que as ditaduras de Brasília e Montevidéu negavam.
A força de uma memória
Nada disso aconteceria sem o olho de repórter de Lamas. O mesmo Lamas que ganhou o Prêmio Esso de Fotografia, em 1988, ao fazer a primeira foto – roubada, como ele gostava – de um doente terminal de Aids no hospital Emílio Ribas, em São Paulo. Uma foto chocante, que colocou o país diante da imagem cruel de uma doença que o país se recusava a encarar.
Outra doença cruel, o câncer, começou a minar Lamas por dentro, anos atrás. Estrela discreta das mais nobres redações da imprensa brasileira e freqüentador fiel dos bons botecos das redondezas, Lamas trocou, em 1987, a vida frenética de São Paulo, onde chefiou a fotografia da sucursal de O Globo por 14 anos, pela paz reconfortante de um chalé às margens da lagoa de Ibiraqüera, quando a praia catarinense de Garopaba ainda era um paraíso. Ali, Lamas ficou longe das redações, mas não dos bares. Abriu um, o ‘Pôr do Sol e Arte Fotográfica’, ali mesmo na praia. Foi nesta doce companhia que o velho Lamas de guerra passou seus últimos anos de vida, compensando as dores do mal que o devorava por dentro.
Lamas foi um exemplo de caráter, de coragem, de talento, de companheiro. A dor de sua ausência lateja como um tumor que não se expurga. Mas a força de sua memória tem a beleza das ondas que quebram mansamente, para sempre, nas areias de sua querida Garopaba.
Saudades, Lamas!
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Jornalista