Hoje, enquanto eu coletava dados para reescrever este artigo, deparei com uma matéria interessante no JB Online falando sobre o crescimento do exercício da cidadania na rede. Realmente, este meio tem permitido que pessoas tomem conhecimento de assuntos que passam longe da alçada do que é veiculado livremente pelos demais meios de comunicação: em http://jbonline.terra.com.br/matéria, com um simples ‘clicar’ de mouse podemos ter acesso às atividades dos mais ‘diferentes grupos em busca de soluções para os problemas sociais’. De repente, o mundo está em nossas mãos, bem aqui, e esse poder de ‘estar presente’ tem feito muita gente, como eu, tomar conhecimento do que vem acontecendo de forma mais participativa, graças à interatividade e à possibilidade de contato direto com outras pessoas que tenham os mesmos interesses, através de sites de busca e, principalmente, através de listas de discussão.
Pois bem, semanas se passaram e mobilizações e campanhas pelos direitos dos animais parecem ter reacendido suas tochas. O veto pela prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, do Projeto de Lei 428/03, de autoria do vereador Roberto Trípoli, proibindo a entrega de animais recolhidos nas ruas a instituições de ensino e pesquisa, vem trazendo à baila uma discussão sem fim: podemos impor sofrimento aos animais em nome da ciência e/ou do ensino? Embora sob os auspícios de experimentos científicos ou de aulas ilustrativas que necessitem de cobaias, a idéia de mutilar, injetar substâncias nocivas e provocar sofrimento em animais, principalmente cães e gatos, não é bem vista. Existe uma espécie de repulsa instintiva por parte de pessoas que amam os animais ante essa idéia e, sem descambar para a pieguice escrachada, tem sido em nome desse sentimento que em várias partes do estado de São Paulo, e em outros estados do Brasil, pessoas vêm se mobilizando para que tal veto seja derrubado.
O assunto muito me interessa, mas não foi a partir da leitura de jornais e revistas que eu dele tomei conhecimento. Foi justamente fazendo buscas na internet que eu me deparei com uma lista de endereços de e-mail dos vários vereadores da Prefeitura de São Paulo, com a proposta de enviar-lhes uma mensagem pedindo a derrubada do veto, proposta pela Associação de Proteção Animais de SCSul-SP (APASCS). Em 18/1/2004 às 20h20, a lista estava em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/01/272346.shtml
Achei uma idéia válida e lá fui eu elaborar uma mensagem pedindo pela vida dessas criaturas, sentindo-me parte de um movimento, parte de um grupo que vem lutando para que animais não sejam vistos apenas como fonte de alimento ou entretenimento, mas que sejam também considerados dignos de não sofrerem imposição de dores físicas e maus tratos. E foi assim, tentando trazer à tona uma carga razoável de sentimento a fim de impressionar essas pessoas responsáveis pela expressão de nossa voz junto ao governo, que eu me lembrei de um evento que me marcou profundamente pelo sarcasmo dos envolvidos, pelo descaso e por uma luta inglória levada adiante por esses indivíduos pelo direito de matar animais sem ser para consumo nem para pesquisa, mas, segundo eles, por motivos ‘igualmente válidos’.
Ritual de ‘de puro amor’
Eu tive formação científica, meus conhecimentos sobre religiosidade não se estendiam além de alguns anos freqüentando a igreja católica, alguns anos freqüentando o espiritismo kardecista e mais alguns de libertação de tudo isso a partir de uma assumida posição ateísta, sem dogmas, sem regras além da moral calcada na liberdade com responsabilidade. Sim, sou responsável pelos meus atos. E foi munida dessa responsabilidade que um belo dia eu decidi entrar no mundo virtual da internet em busca de algum conhecimento fora da minha área de formação. Adentrei o mundo virtual da magia que envolve vários segmentos de prática mágica; um mundo em ascensão nesta sociedade em que a igreja católica vem deixando a cena principal e dando lugar a outros movimentos, inclusive o de ‘resgate’ do paganismo.
E foi justamente tomando contato virtualmente com essas práticas que, não faz muito tempo, fiquei sabendo de um caso curioso. Numa lista de discussão, dessas muitas em que se discute magia e encantamentos que medram soltas pela internet, saiu uma foto linda de um gato preto. A resposta a essa mensagem era um pedido:
(…) Já faz um tempinho que não escrevo ou me manifesto na lista…
É o seguinte, como (nome da lista) é uma lista voltada para troca e informações sobre feitiços também, gostaria de saber se alguém poderia me fazer uma doação de um gato preto do sexo masculino para que eu realize um ritual de sacrifício para as Mães Ancestrais. Sei que alguns aqui acham isso inconcebível, mas o assunto é serio!
Por favor entrar em contato no pvt, no e-mail (endereço de e-mail)
Depois disso, um silêncio sepulcral… E as respostas foram sucedendo-se tentando explicar a finalidade do gato. Ora, o que ele queria era só um gato preto, preferencialmente um filhote, que seria morto num ritual de cura. Cura do quê? Neoplasia pulmonar… De que forma? Ofertando-se o pobre do gato às mães ancestrais… Mas de que forma o gato seria morto? Com palavras mágicas! O fulano garantiu, seguido por um ‘sim, sim, é verdade’ nervoso, que diria umas palavras mágicas para o gatinho e BUF!!, sua curta vida seria ofertada às tais mães ancestrais com o nobre propósito de salvar uma vida humana. ‘Orixás são espíritos de puro amor’, ele complementa.
Charlatão impune
Mas que raios são essas mães ancestrais? Então, munindo-me de meu acesso aos sites de busca, fui procurar por elas:
Iyamis Oxorongá: num culto feminino, mormente ainda praticado na Nigéria, África, sacerdotisas evocam e devotam-se às Iyamis, que às vezes aparecem na forma de Oxorongá, uma ave, mas são espíritos com poder de vida e morte, temidas e respeitadas. Representam o poder feminino, o ventre, o ciclo de vida, morte e renascimento.
E é com a própria morte que tais sacerdotisas incorporam o número de ‘mães ancestrais’ e assim segue o culto que, ao ter transladado o Oceano Atlântico junto dos escravos negros, foi mudando de roupagem, sendo incorporado a outros cultos. Enfim, faz parte da cultura inclusive do candomblé praticado aqui no Brasil. E quem pediu o gato foi um homem, ‘grande iniciado em tais práticas por sacerdotes nigerianos da atualidade’. Gozação? Antes fosse… Mas, mensagens após, o pedinte alega ter obtido seu gato a partir de uma doação feita por um dos membros da lista e parece finda a questão.
Bem, a história em si não é uma aberração isolada, faz parte do repertório de crenças veiculadas livremente sob os auspícios de práticas religiosas. No Brasil, país de profundas crenças religiosas calcadas no sincretismo de religiões judaico-cristãs com os cultos afro, oferendas são abatidas e, quando não são comidas, são jogadas fora. Geralmente o sangue e as partes do corpo do animal com o ‘axé’ – a ‘força’ do animal – são utilizadas, sendo que a carcaça é simplesmente desprezada nos rituais ditos ‘expiatórios’, em que se crê que o animal incorpora os ‘miasmas’ negativos, livrando assim o doente de sua doença ou de seus problemas. Uma praticante que foi em defesa do amigo que pediu o gato:
‘Juro que não ponho galinha sacrificada em limpeza na minha boca! arghhhhh….’.
Ou:
‘(…) Eu mesma já sacrifiquei pombos em rituais goéticos, vou ser sacrificada nesta lista se disser que ‘não (os) como nem que a vaca tussa?’’.
Sem puritanismos, o que mais me chocou nessa história toda é que ‘neoplasia pulmonar’, que o sujeito alega ser capaz de curar com essa prática, é câncer. Quanto mais rápido o diagnóstico for efetivado maiores as chances e o prognóstico de vida. Uma vez diagnosticado, sem o tratamento adequado, tal doença pode matar. E como alguém em sã consciência vai em busca de tratamento alternativo para esse problema sem a devida assistência médica? E ainda por cima a partir da morte de um gatinho num ritual? Pior ainda: como alguém pode, impunemente, iludir um doente acometido de uma doença grave prometendo curá-lo por meio de um ritual africano e, francamente falando, tolo?
Sem escrúpulo algum
Fui em busca de respostas a tais perguntas na lista do tal fulano. Infelizmente minhas dúvidas não foram saciadas a contento: imediatamente após meu questionamento, o fulano, que se diz alto iniciado, resolveu parar de dar ‘canja’ explicando seus rituais, fui banida da lista, posteriormente as mensagens trocadas comigo em sua própria lista de discussão foram deliberadamente apagadas e, de repente, é o dito pelo não dito. Mas uma sensação estranha vem me seguindo desde essa tentativa de conhecer melhor essa cultura em que o abate dos animais é consumado para que outros possam ser iludidos sobre sua saúde. Enfim, é crença, e crença não se discute… Mas será que também não se questiona?
A Lei de Crimes Ambientais de nº 9.605/98 diz no Artigo 32:
É crime praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena e detenção: de três meses a um ano, e multa.
Parágrafo 1. Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
Parágrafo 2. A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
Então, embora seja ‘crime praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos’, quando se alega que a morte do animal tem fito religioso esta lei parece perder a validade. Por quê? De que forma a morte de um animal indefeso, principalmente doméstico, como cães e gatos, que não seja para fins de alimentação, pode ter algum valor, ou ser tolerada, além de servir apenas para que o praticante de seu culto sinta-se livre para fazer o que bem entender?
Por exemplo, o sujeito que eu cito acima sente-se tão seguro de sua liberdade de agir conforme sua religião permite que comenta ainda, sem escrúpulo algum, os estertores de morte de alguns dos animais que ele abateu e, por fim, zomba: ‘E daí? … não há como provar!’. É fato, não há nada que possa incriminar alguém que esteja sacrificando animais no exercício de sua prática religiosa e, ao contrário do que possa parecer, sou eu quem corre o risco de estar infringindo a lei caso divulgue tais práticas publicamente, dando nomes aos envolvidos… Sem comentários.
Liberdade religiosa?
Sim, há movimentos contrários. No Rio Grande do Sul, um projeto de lei visando acabar com a prática de sacrifícios envolvendo abate de animais com fim religioso chegou a vingar para a opinião pública. Porém, há movimentos contrários aos contrários, partindo estes dos próprios representantes das religiões em que tal prática é incentivada, uma vez que se sentem privados de um dos pilares de seus sistemas de crença com a proibição. Em julho do ano passado, representantes desses cultos entraram em acordo com o próprio governador, que assegurou então aos presentes em ‘cerimônia’ o cumprimento do que está na Constituição vigente quanto à liberdade de culto.
No site da Sociedade União Internacional Protetora dos Animais (Suipa), numa página dedicada à campanha contra maus tratos aos animais (http://www.suipa.org.br/portal/circulares_ago03.asp), lê-se algo com que eu concordo firmemente:
‘Quem hoje sangra até a morte um animal indefeso fará amanhã o mesmo com um humano’.
Mas os políticos, que legalmente deveriam representar ‘toda’ a sociedade, parecem ser favoráveis a tais práticas. Há a liberdade de culto e há que se permitir que tais cultos sejam praticados livremente, dizem. Será?
Predisposição assassina
Mas afinal, o que faz com que uma prática religiosa seja considerada digna de pertencer ao clã de ‘praticável’, enquanto outras não? O que determina que o abate de vítimas seja justificável em alguns ritos e em outros não? Porque são vítimas humanas? E se fossem animais em vez de crianças? E será que é só colocar ‘satanismo’ nos laudos para fazer com que a prática seja indigna? Ou será que toda essa prática de matança ritual, inclusive de animais sem o fim de servir de alimento, não é indigna?
Onde está a linha limítrofe que impeça a morte de seres humanos caso haja também o desejo de resgate das práticas ancestrais pagãs? Sim, porque o sacrifício humano já foi muito difundido na Antigüidade; pelo menos assim garantem os praticantes de sacrifícios de gatinhos. Em que, enfim, baseiam-se os prós e os contras de tais práticas? E se, a partir de uma maior divulgação, os praticantes de tais cultos conseguirem convencer mais gente de que os rituais devem ser seguidos à risca e mortes humanas devam ser aceitas como parte dos rituais? Será que haverá alguma lei proibindo? Segundo as palavras da mesma praticante, engajada na divulgação e vivência do paganismo, já citada anteriormente:
(…) Também gostaria de deixar claro que ao meu ver estes pontos (referentes a sacrifícios sangüíneos) DEVEM sim ser abordados, no mínimo, com a mente aberta que DEVERIA ser típica do que chamamos genericamente PAGÃOS, para que sejam finalmente compreendidos, e o véu da ignorância, finalmente, rasgado. (…).
É assim que eu penso que talvez esse meu questionamento só nasça da minha ignorância do ‘espírito’ que anima os seguidores de tais práticas. Mas é uma preocupação real a ser questionada num mundo real, em que há pessoas com predisposição assassina sendo aceitas sem maiores protocolos em seitas, em grupos e movimentos religiosos que fazem da prática dos sacrifícios sangüíneos uma rotina.
Viver e deixar viver
Enfim, tenho tido algum trabalho em meio a pesquisas e busca de algo palpável que desse respaldo a tais práticas, mas nunca encontrei nada além da fé. Fé em encenações de eventos que fazem parte do imaginário ligado aos mitos de criação do mundo originados em sociedades ancestrais e que são interpretados até hoje, e na maior parte das vezes mal-interpretado, em nome da liberdade de culto. Crenças pessoais ganhando status de incontestáveis porque falsamente se associam a cultos reconhecidos e praticados livremente. Enquanto isso, iniciativas de entidades como a Suipa, de denunciar e evitar os maus tratos seguidos de morte dos animais, têm sido deixadas de lado. E agora a senhora prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, aumenta o cortejo fúnebre vetando o projeto de lei que proíbe o envio de animais apreendidos a centros de pesquisa e ensino…
O que se alega contra as tentativas infrutíferas dos defensores de animais? Alega-se que animais servem para alimento, entretenimento, pesquisas, e que zilhões de bactérias são mortas por desinfetantes sem que por isso fiquemos horrorizados. Tudo é permitido em nome da fé, em nome da ciência, em nome do descaso. Sob os auspícios da ciência ou da fé a morte é justificada. Já me disseram que ‘o erro está nos olhos de quem vê’.
Daí, dada a impunidade e a falta de respeito a outros seres vivos, vai ver que sangue de gato preto tem poder mesmo, e eu e tantos outros que lutam pelo ideal de viver e deixar viver é que estamos errados.
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Física, dedicada atualmente às artes plásticas