Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Sem dar consequência, vamos perder o legado da Confecom’

Ao cabo de oito anos, o governo do presidente Lula deixou muito a desejar no que se refere às políticas públicas de comunicação para o Brasil. Se o Parlamento não der consequência às demandas da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), será como se ela nem tivesse acontecido.

De acordo com o professor e pesquisador César Ricardo Siqueira Bolaño, autor do livro Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil?, para avançar em políticas democráticas no setor, alguns dos principais elementos pelos quais se deve lutar hoje são a construção de um novo marco regulatório abrangente, que ultrapasse a questão dos ajustes legais por tecnologia; e a criação de um Conselho Nacional deliberativo e autônomo.

César Ricardo Siqueira Bolaño é jornalista, autor, entre outras obras, do livro Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil? (ed. Paulus, SP/2007). Doutor em Economia, professor adjunto da Universidade Federal de Sergipe (UFS), do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFS e do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília (UnB), foi o primeiro presidente da União Latina de Economia Política da Informação, Comunicação e da Cultura (ULEPICC). Leia sua entrevista a seguir.

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No caso da TV a cabo, existe uma legislação própria

Que regras determinam, atualmente, as políticas públicas de comunicação no país?

César Ricardo Siqueira Bolaño – Tenho um livro publicado (Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil?) no qual discuto justamente qual é o sentido dessas políticas. E o que se observa é que as políticas de comunicação no Brasil têm uma regra, basicamente, que é a de atender ao interesse dos radiodifusores. O resto é secundário. Isso é a norma geral que se vê no estudo da história dessas políticas no país até muito recentemente.

Legalmente, como essas regras estão estruturadas?

C.R.S.B. – No Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, e na Lei Geral de Telecomunicações – LGT, de 1997, que separou a radiodifusão das telecomunicações. Desta forma, a radiodifusão continua sob o controle da antiga lei e o resto, as telecomunicações, inclusive a TV a Cabo e as outras formas de televisão pagas, estão de acordo com a nova lei e mais ou menos vinculadas ao setor de telecomunicações. No caso da TV a cabo, especificamente, existe uma legislação própria, de 1995 (Lei 8.977/95).

Um marco legal renovado

Isso resume as regras para a comunicação do país?

C.R.S.B. – Esses são os marcos gerais das políticas de comunicação, mais a Lei do Cabo, que é anterior à LGT, mas acaba se enquadrando na mesma, inclusive tendo como órgão regulador a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

A LGT foi elaborada no governo Fernando Henrique Cardoso, preservando o setor de radiodifusão sob a responsabilidade do Ministério das Comunicações, que atende basicamente os interesses dos radiodifusores. Então, toda a discussão sobre democratização das comunicações no Brasil será remetida para uma ou para outra [lei].

No Congresso Nacional, circulam alguns projetos. O PL 29 (atual PLC 116, que tramita no Senado, que regulamenta a entrada das empresas de telecomunicações na prestação de serviços audiovisuais) é o que mais se comenta. Mas sempre circulam propostas como a da Jandira Feghali (ex-deputada federal pelo PCdoB do RJ, autora do projeto de lei que prevê regionalizar a programação artística, cultural e jornalística das emissoras de rádio e TV, o PL 256/91), da regionalização, mas isso não chega a se materializar em mudança efetiva das políticas de comunicação no Brasil. Pelo menos até hoje não chegou.

Um novo marco regulatório poderia contemplar as políticas de comunicação frente aos avanços tecnológicos e garantir a função social da mídia?

C.R.S.B. – Sim. Exatamente. Porque vivemos num mundo em que a tecnologia se desenvolve muito rapidamente e tudo vai sendo resolvido, na legislação brasileira, no caso a caso. Isso torna o processo bastante confuso.

Nós precisaríamos de um marco legal renovado e geral para o conjunto do setor, porque sempre que surge uma inovação tecnológica na área, há uma pequena mudança na lei ou há toda uma discussão, como no caso do PL 29, da convergência. Mas não se muda o arcabouço da legislação do setor de comunicação no Brasil. Não é pela tecnologia que isso vai se resolver.

Acho até que na Constituição Federal brasileira tem mecanismos que poderiam ser regulamentados. A partir da própria Constituição seria possível criar um marco regulatório adequado. Penso que seria possível regulamentar a partir dali porque a CF tem a base, só que não existe legislação para que a norma seja efetivamente cumprida.

O que o governo fez no campo da Comunicação foi insuficiente

Quais são os maiores conflitos, hoje, no debate público da comunicação no país? E para a democratização da comunicação?

C.R.S.B. – Para mim, a grande questão é que no Brasil, hoje, você pode dividir os interesses do setor em três grandes grupos: conservador (defende os interesses da radiodifusão), progressista (defende os interesses dos movimentos pela democratização da comunicação) e liberal (defende os interesses das telecomunicações). Esses setores não são igualmente contemplados no processo de produção legislativa na área de comunicação no Brasil.

O que precisaríamos é de um sistema mais equilibrado, em que o setor progressista também fosse contemplado, porque ele tradicionalmente defende aspectos importantes da legislação ligados à democratização da comunicação no Brasil. Os outros setores têm interesses mais corporativistas e são os que dominam.

Na questão do PL 29 (hoje PLC 116), por exemplo, são esses dois setores (Conservador e Liberal) que acabam encontrando soluções de compromisso. Porque se temos um setor de radiodifusão muito poderoso do ponto de vista da capacidade de lobby, temos um setor de telecomunicações muito mais poderoso ainda economicamente. Tudo vira uma disputa de mercado e são eles que darão a solução.

O setor que fica prejudicado nesse processo é o que representa a sociedade civil, que defende os interesses sociais do país. Então, acho que esse é o foco que deveria ser adotado por um governo democrático e popular como o atual, mas infelizmente a gente sabe que o que o governo Lula fez no campo da Comunicação foi bastante insuficiente.

A grande dívida do governo Lula

Mesmo e apesar da Conferência Nacional de Comunicação?

C.R.S.B. – Apesar da Conferência. Eu fui delegado, participei, mas não tenho mais notícias. Vai fazer um ano que acabou.

Mas a Confecom propiciou o debate sobre políticas públicas de comunicação no Brasil. Como dar consequência ao acúmulo gerado pelo evento?

C.R.S.B. – O debate no Brasil sempre ocorreu. É uma característica brasileira. Mas depois, nada acontece. A Conferência foi importante, porque se criou uma esfera pública em torno do assunto, foi chamada pelo governo. Legitimou o debate e inclusive colocou os três setores presentes – empresarial, sociedade civil e governo. Apesar de que os representantes mais importantes do empresariado, oligopolistas (as grandes redes de TV), não participaram.

O problema é que isso não teve uma consequência legislativa posterior. O Congresso Nacional não está dando consequência àquilo que foi debatido pela sociedade civil dentro da Conferência. E já vai fazer um ano.

Nos oito anos do governo Lula, dá para dizer que na área de políticas de comunicação nada avançou. É diferente da política cultural, por exemplo, onde aconteceram coisas. Na comunicação, houve a criação da TV pública (EBC, TV Brasil), interessante, mas que foi apenas um rearranjo. De fato, a TV pública no Brasil continua com o mesmo espaço que tinha antes, em termos de audiência e de produção efetiva. Então, a mudança estrutural, a mudança de hegemonia no setor de comunicação não ocorreu.

Temos que esperar agora que no próximo governo isso venha acontecer. Essa é a grande dívida do governo Lula, eu acho. Ele avançou numa série de coisas importantes no Brasil, mas deixou a desejar no setor da comunicação.

TV pública fica na discussão filosófica

No caso da TV pública, o que o senhor acha que falta para ela deslanchar?

C.R.S.B. – Não tenho uma avaliação minuciosa dessa questão. De modo geral, não houve mudança significativa no panorama da televisão brasileira com isso. Se havia no Brasil as TVs públicas estaduais, hoje tem um sistema reformado, mas com o mesmo tipo de audiência e programação. Não houve mudança mais profunda.

Acho que para ter uma TV pública como a que tem na Europa, por exemplo, precisaria haver três canais. A Europa tem uma TV pública que disputa espaço. Na França, onde a primeira cadeia de TV foi privatizada, é a cadeia pública, hoje, que tem a liderança. Lá, foi privatizada a cadeia pública de maior audiência e a cadeia pública remanescente acabou assumindo a liderança em pouco tempo. Isso não se discute, isso é banal na estrutura da televisão europeia, por exemplo.

No Brasil a TV pública ainda fica na discussão filosófica. A TV pública deve transmitir novela? Acho que deve. E deve produzir novela de qualidade, porque faz parte do padrão cultural do povo brasileiro. Agora, com um canal só, fica difícil. Então, acho que essa preocupação não existe ainda. O que houve foi um rearranjo, até interessante do ponto de vista institucional, porque precisamos de um canal centralizado e isso foi feito. Mas não mudou o panorama da TV brasileira. Se a televisão brasileira está mudando é por força de outras questões que atuam no nível do mercado e não por força de uma TV pública diferente.

Uma nova política de comunicação

Na sua opinião, um Conselho Nacional de Comunicação com caráter deliberativo deve fazer parte de um conjunto de políticas públicas para o setor?

C.R.S.B. – Eu apoio a ideia do Conselho de Comunicação Social desde o início, na Constituinte (1988). Acho que foi uma conquista, mas que aconteceu muito tempo depois, de forma limitada e por um curto espaço de tempo. Acabou até cumprindo a proposta de debate, que se processou muito em função, inclusive, da atuação de algumas pessoas, do Daniel Herz, particularmente, que teve papel fundamental neste processo, mas em seguida acabou.

O que nós precisamos é de um verdadeiro processo de democratização da comunicação. Um conselho com as características (deliberativo, autônomo) propostas originalmente pelo setor progressista é um dos elementos importantes pelos quais se deve lutar ainda hoje.

Isso tem que ser realizado através do debate político e da hegemonia. Nossa estrutura hegemônica até hoje não permitiu que se avançasse muito nesse processo.

Na busca de construir políticas de comunicação para o país, então, qual seria o próximo passo?

C.R.S.B. – Acho que a grande questão é o novo marco regulatório, recuperando os debates da Conferência. O debate foi realizado, os documentos existem. Agora é dar consequência a isto, porque se mobilizou recurso público, inteligência brasileira. Um monte de gente participou, se chegou a algumas conclusões e esse material tem que ser trabalhado. O movimento deveria estar focado nisso.

É preciso que o novo governo – porque este já não poderá fazer, evidentemente – assuma isso. Que os candidatos assumam esse compromisso e que o próximo governo faça o que não foi feito até agora. Se o novo governo fizer, a gente até vai poder dizer que o governo Lula fez uma coisa importante na Comunicação, que foi a Conferência. Se não acontecer nada, é porque de fato não houve nada. Acho até que o governo Lula e quem o apoiou deveria assumir esse compromisso, mesmo se estiver na oposição, de ajudar a implementar uma nova política de comunicação no Brasil.