Sempre fui um defensor da plena liberdade de expressão. Torço o nariz para aqueles que buscam censurar, limitar, cortar, proibir. Prefiro as ações que estimulam a pluralidade, as que disseminam formas alternativas de comunicação. Mas não significa que condene o controle social da mídia. Pelo contrário, este controle é necessário justamente para a preservação da liberdade de expressão. Um controle social bem executado é capaz de estimular a concorrência, de assegurar a defesa do interesse público, de, ao fim e ao cabo, tornar a comunicação melhor.
Neste Observatório da Imprensa estou bem acompanhado, em número e em qualidade. Aqui tive a oportunidade de ler alguns dos melhores textos sobre o tema. Pois qual não foi a minha surpresa ao ver justamente aqui no OI alguém, sem meias palavras, classificar a suposta proposta do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) de instituir um controle social da mídia como ‘censura’ (‘Sem meias palavras‘, de Gustavo Binenbojn, texto reproduzido do Estado de S. Paulo).
Senhores, aos fatos! No PNDH3, como já havia alertado o professor Venício A. de Lima, não há qualquer menção à expressão ‘controle social da mídia’. Tudo bem, estou sendo chato. A proposta de ação 102, na página 209, fala em ‘garantir a possibilidade de fiscalização da programação das emissoras de rádio e televisão, com vistas a assegurar o controle social sobre os meios de comunicação e penalizar, na forma da lei, as empresas de telecomunicação que veicularem programação ou publicidade atentatória aos direitos humanos’. O autor apenas confundiu os termos, omitiu a maior parte do texto e fez uma transcrição inexata. Vamos relevar essas graves falhas, substituir controle social sobre os meios de comunicação por controle social da mídia e assim podemos continuar o nosso artigo em paz.
O que propõe o PNDH3
Destrinchemos as propostas do item 102 do PNDH3, pois na verdade são várias em uma. A primeira que analisaremos – garantir a possibilidade de fiscalização da programação das emissoras de rádio e televisão. A Constituição Federal vai nos guiar nessa análise – ‘Compete à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens’ [Art. 21, inciso XII, alínea ‘a’]. Ora, se o serviço é público, podendo a sua execução ser outorgada a terceiros, que o prestarão de acordo com os termos da outorga, nada mais óbvio do que a necessidade de garantir a possibilidade de fiscalização. Temos um poder-dever do Estado aqui, sem margem alguma para questionamento.
Continuemos: ‘Penalizar, na forma da lei, as empresas de telecomunicação que veicularem programação ou publicidade atentatória aos direitos humanos’. Com exceção de alguns facínoras que este mundo teve o desgosto de parir, há uma unânime impressão de que atentados aos direitos humanos devem ser punidos. Também unânime é o sentimento de que essa punição não deve ser aplicada de maneira irresponsável, sem direito de defesa ou com um massacre do acusado. Ela deve ocorrer na forma da lei, seguidos todos os trâmites que garantam um processo justo e uma pena o mais proporcional e humanizada possível.
Restou o mais polêmico: o controle social da mídia (sic). Há as mais diversas formas de controle social sobre a mídia nesse mundo, como bem disse o autor, e uma delas – da que mais gosto, por sinal – é o media criticism, crítica da mídia no nosso belo idioma. E no Brasil, creio que não exista melhor exemplo de mecanismo de crítica da mídia do que o Observatório da Imprensa. Esta é uma publicação aberta, independente, ativa. E, principalmente, sem censura. Aqui os discordantes têm voz, e não raro textos diametralmente opostos dividem o mesmo espaço, que os editores distribuem de forma muito democrática.
Preconceito anti-Estado
Porém, por melhor que seja o OI, ele não substitui o Estado. Em conjunção com a ‘capacidade de julgamento e escolha dos indivíduos’, com a ‘liberdade de escolha dos leitores, ouvintes e telespectadores’ e com a ‘concorrência entre os meios de comunicação’, o OI pode, de fato, ajudar a elevar a qualidade da mídia brasileira. Mas sem a atuação do Estado, um controle social efetivo sobras as comunicações não ocorrerá.
E o Brasil é um exemplo perfeito do que a falta de atuação do Estado pode gerar em relação às comunicações. Nenhuma das premissas que poderiam gerar o que o autor classificou como a ‘única forma de controle social’ existe de fato no país. Liberdade de escolha? Temos um dos mercados de mídia mais concentrados do planeta, apesar da Constituição proibir claramente o monopólio e o oligopólio. Concorrência entre os meios de comunicação? Em poucos lugares existe tamanha leniência com a propriedade cruzada, que faz com que um único grupo de comunicação possa ter jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, portais de internet etc. Fontes diversificadas de informação? Em nenhum país ocidental o mercado de radiodifusão é tão baseado em transmissão em rede, havendo pouco espaço para a produção local e independente – mais uma regra constitucional solenemente ignorada devido à recusa do Estado em regulamentar esses princípios.
Mas por que o autor tem tanto medo da atuação do Estado na regulação da mídia? Em democracias avançadas – muito mais que a nossa, por sinal –, essa atuação é intensa. Em muitos casos, é o próprio Estado que presta os serviços de radiodifusão, restando ao setor privado apenas uma atuação marginal. Já naqueles países que optaram pelo trusteeship model, em que empresas privadas prestam os serviços de radiodifusão, o Estado deve zelar pela manutenção de uma série de princípios na programação, de modo a garantir rádios e TVs atendam a fins educativos e culturais.
O que temos no Brasil, infelizmente, não é nem um, nem outro. Os mecanismos de comunicação do Estado são fraquíssimos e não fazem frente ao sistema privado, que opera em um regime de quase absoluta liberdade, sem qualquer espécie de controle. Definitivamente, o maior problema para uma efetiva implementação de controle social sobre os meios de comunicação no Brasil, ao contrário do que acredita o autor que não tem meias palavras, não é a presença do Estado. É a falta dele.
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Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e consultor legislativo da Câmara dos Deputados; editor do blog Museu da Propaganda