Quem acompanha com um pouco mais de atenção a estratégia de ação dos proprietários dos grandes meios de comunicação, já deve ter observado que eles e os seus prepostos, inclusive alguns que têm grandes espaços midiáticos, se irritam, geralmente, quando avançam as discussões e mesmo as mobilizações em torno da democratização dos meios de comunicação. Não se trata apenas de um fenômeno nacional, mas mundial, com reflexos marcantes neste continente americano, como provam, por exemplo, as sucessivas manifestações e notas oficiais da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), a entidade que agrupo os grandes proprietários midiáticos da região.
E não pode haver dúvidas de que nos dias de hoje um dos grandes desafios a ser enfrentado é o do aprofundamento do processo democrático na área de comunicação. Ou seja, o acesso à informação de amplas parcelas da população mundial, sem subterfúgios e manipulações. Quando se fala em democracia, deve ser este conceito entendido na verdadeira acepção da palavra, e não na base da retórica pura e simples. Só a manipulação grosseira de acontecimentos contemporâneos importantes, como acontece diariamente na mídia convencional, já valeria a mobilização em favor da democratização dos meios de comunicação.
Confundir a opinião pública
Na verdade, não se trata de uma batalha a ser travada apenas por jornalistas e comunicadores de um modo geral, mas sim, por todos formuladores ou receptores da informação. E neste caso são bilhões de seres humanos em todo o mundo.
No Brasil, já há um consenso entre os setores que defendem a democratização dos meios de comunicação de que para alcançar esta meta é necessária a ampliação do acesso dos mais diversos setores sociais aos espaços midiáticos.
Em tese, a instalação do sistema digital no rádio e na televisão deveria contribuir para esta ampliação. Mas, para que isso aconteça, é necessário antes de mais nada que haja vontade política. E esse desejo muitas vezes se choca com a oposição dos grandes proprietários do setor de comunicação que querem que a digitalização traga apenas maiores lucros fáceis para o setor. Defendem com unhas e dentes, por exemplo, uma interatividade que amplie o consumo de materiais e produtos apresentados na pequena tela. Mas não o surgimento de novos protagonistas nos espaços que se abrem com a revolução tecnológica. Querem apenas garantias para eles e mais ninguém.
Esta é a principal filosofia que, ao ser questionada, encontra dura resistência. Os críticos são acusados de atentar contra a liberdade de imprensa e argumentos do gênero, numa visível confusão de conceitos. Em outros termos, os grandes proprietários midiáticos tentam confundir a opinião pública misturando o conceito de liberdade de empresa com liberdade de imprensa ou de expressão. É esta a forma como são respondidas campanhas que pedem a democratização das comunicações.
Sem subterfúgios ou manipulações
Jornalistas e comunicadores conscientes não podem ficar de fora desta batalha pela democratização dos meios de comunicação, que para ser levada adiante necessita também de um impulso concreto do poder público. Vejam bem, do poder público, não deste ou daquele governo, como não raramente acusam os big shots do setor midiático os grupos que se mobilizam para conseguir alcançar o objetivo de democratizar o espaço midiático brasileiro.
Não significa ficar contra este ou aquele grupo midiático, mesmo sabendo que não poucos, até a presente data, encontram total apoio na área parlamentar ou mesmo no Executivo, com a promulgação de leis a seu favor, a impunidade com o descumprimento de legislações e geralmente em detrimento de amplas parcelas da população.
Informação sem manipulação e sem a prática do pensamento único deve ser considerado um direito inalienável do povo.
É claro que uma discussão desta natureza não se esgota em um artigo ou tese. É necessário muito mais, ou seja, a ampliação do debate, mas de uma forma que as opiniões emitidas sejam apresentadas para a sociedade sem os subterfúgios ou manipulações que ocorrem rotineiramente nos grandes veículos de comunicação.
Espaços midiáticos para todos
É necessário lembrar que a democratização da mídia passa também pelo fortalecimento e consolidação das TVs e rádios públicas, que em países como o nosso só acontece quando o Estado entra em cena impulsionando tais veículos.
Tese como esta será combatida frontalmente pelo patronato, o mesmo patronato que há décadas se vale da publicidade do Estado e não aceita em hipótese alguma que tais verbas sejam distribuídas de forma mais equânime, contemplando também veículos de comunicação alternativos à grande mídia. Ou seja, não é cortar publicidade deste ou daquele veículo, mesmo que seja opositor, mas simplesmente fazer uma distribuição mais justa e democrática. Os governos de países latino-americanos que estimularam esta prática são muito combatidos por este tipo de posição. Não raramente, a SIP os denuncia como ‘atentatórios à liberdade de imprensa’, quando o que ocorre é exatamente o contrário.
A discussão deste tema, vale sempre repetir, necessita ser aprofundada para que o Brasil consiga alcançar de fato a democracia na verdadeira acepção da palavra, como entende o escritor e semiólogo italiano Umberto Eco, que afirma que um país só pode ser considerado democrático quando todos os setores sociais encontram espaços midiáticos garantidos em pé de igualdade.
Uma tese que não se sustenta
No contexto desta discussão pode-se inserir um outro tema, muito em voga neste momento e que está para ser decidido pelo Supremo Tribunal Federal: o do diploma para o exercício da profissão de jornalista. O mesmo patronato que radicaliza contra qualquer discussão em torno da democratização midiática é o primeiro a se opor à manutenção do diploma para o exercício profissional de jornalistas. Na própria SIP, o tema volta e meia é discutido e há sempre uma unanimidade, ou seja, a defesa incondicional do fim da legislação que obriga jornalistas a fazerem cursos de comunicação para trabalhar.
Pode em princípio surpreender a mescla das duas questões, mas ao se analisar um pouco mais a fundo chega-se ao vínculo.
Os grandes proprietários dos veículos de comunicação argumentam falsamente que a exigência contraria a liberdade de imprensa. Muitos que se contrapõem a esta tese apresentam justificativas ingênuas segundo as quais o diploma é o que garante a ética e a liberdade de imprensa.
Mais uma vez misturam-se conceitos, isto é, liberdade de empresa com liberdade de imprensa, diploma e democratização da informação. Por que o exercício da profissão de jornalista sem diploma ampliaria a liberdade de imprensa? Eis uma tese que não se sustenta. Ou por que o diploma por si só garantiria a democratização dos meios de comunicação? Nem uma coisa, nem outra. A democratização dos veículos de comunicação só pode ser garantida pela sociedade, que deve se mobilizar para também neutralizar a tendência da manipulação da informação, tão em voga na atualidade.
Problema é mais complexo
E por que sustentar que a não obrigatoriedade do diploma não facilitaria o aviltamento da profissão e a redução dos gastos da folha de pagamento das empresas? O patronato poderia ter mais facilidade na escolha para trabalhar nas redações só o pessoal que lhe interessasse e de estrita confiança. A prioridade seria escolher os mais dóceis e que se comprometessem a defender os interesses patronais em todas as áreas.
Como se tudo isso não bastasse, os próprios proprietários ditariam totalmente as normas do mercado, puxando os salários para baixo e, conseqüentemente, ampliando e facilitando ainda mais os seus lucros.
É necessário deixar claro também que a manipulação da informação acontece nas mais variadas mídias e pode ser feita por diplomados e não-diplomados. Trata-se de uma batalha ideológica que neste caso independe da formação profissional. Se assim não fosse, bastaria só haver jornalista com diploma para não acontecer a manipulação da informação e a ampliação do esquema do pensamento único. Há redações em que só trabalham jornalistas diplomados e nem por isso não existe a manipulação da informação ou deixa de prevalecer o esquema do pensamento único. O problema em questão é muito mais complexo e seria simplório reduzi-lo ao ter ou não ter diploma.
Fazer cabeças é uma necessidade
Não se pode deixar de mencionar, isto sim, de suma importância, que a desregulamentação da profissão de jornalista faz parte do contexto dos que defendem esta mesma desregulamentação em outras áreas profissionais. Se o STF decidir pelo fim do diploma de jornalista, o caminho estaria aberto; ou seja, quebrando-se a exigência do diploma, como querem os proprietários dos veículos de comunicação e também os defensores do modelo econômico neoliberal, o exercício profissional em quase todas as áreas, salvo talvez a engenharia e medicina, poderá ser feito por qualquer um. O professor formado de hoje perderá seu espaço, não significando que o ensino vá melhorar, como alegam também falsamente os defensores da desregulamentação profissional na área de ensino. Seria mais um retrocesso profissional e se eliminaria uma conquista de muitos anos de luta dos professores, como a dos jornalistas, ou seja, a formação universitária.
Para os defensores do modelo econômico neoliberal, nada melhor do que a maior parte dos exercícios profissionais desregulamentados, o que acarretaria, conseqüentemente, baixa e aviltamento dos salários. E é isto, sem dúvida, o que mais sonham os big shots da mídia. A exceção, no caso dos salários, fica por conta de poucos que se propõem a defender interesses do patronato, contribuindo na batalha ideológica em favor do lado dos que têm poder. Aí, sim, estão sendo e continuarão sendo regiamente pagos. Até porque esta elite necessita de defensores com a missão de tentar convencer a opinião pública de que defender poderosos interesses significa defender interesses nacionais e do povo. Em outros termos, fazer cabeças é uma necessidade para os setores que querem manter os seus privilégios em detrimento de amplas parcelas do povo.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ