Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sobre o caso do editor demitido

O jornalismo mais preguiçoso que existe é o chamado jornalismo declaratório. O repórter não precisa nem levantar da cadeira; recebe um telefonema de alguém, que diz o que quer, geralmente sobre outro alguém. O repórter anota tudo, e em seguida, liga para o alvo do primeiro telefonema, dizendo que alguém está fazendo uma denúncia contra ele, e que precisa ouvir o que o segundo tem a dizer sobre isso. Pronto. Como o repórter ‘ouviu os dois lados da história’, o dever dele está cumprido. Ele, então, aperta o ‘send’ e manda o texto para o jornal.


Mas… e se o que o primeiro telefonema relatou for uma deslavada mentira? Uma história bem inventada, ardilosa, nascida de um coração partido? Arquitetada por um marido traído, namorado dispensado ou jornalista demitido?


Fica o dito e o contradito, palavra contra palavra. A verdade, o que aconteceu mesmo, é um mero detalhe. A mentira também. Mas, muitas vezes, um detalhe que achincalha reputações, mancha trabalho árduo. De um dia para o outro, a mentira vira verdade. Dois dias depois, vira editorial, embasa opiniões de outras pessoas. Até de colunistas muito sabidos, mas pouco conhecidos no mercado que eles insistem em comentar.


As duas versões


A série de reportagens envolvendo a TV Brasil, que começou na Folha de S. Paulo (justamente no Dia do Jornalista, 7 de abril) e espalhou-se sem reflexão por outros veículos, é exemplo típico de jornalismo declaratório – o mais preguiçoso que existe. A manchete deixa claro: ‘Jornalista acusa Planalto de interferir na TV Brasil’. A fonte é um jornalista que se diz ‘sob pressão insuportável’ acaba de sair da própria TV. Uau! É abre de página!


Quem é o jornalista? Luiz Lobo, o âncora, o editor-chefe. Deve ter pedido demissão, imolando-se pela causa do bom jornalismo. Não. Foi demitido. Sob alegação de que queria mandar sem estar presente. Detalhe, portanto. Chegava no fim da tarde e queria mudar os textos de um telejornal que começa a ser feito de manhã. Está na internet que ele é CEO e ‘founder’ de uma produtora de vídeo nos Estados Unidos. Tudo isso deve dar muito trabalho. Há registro nas atas de reunião de pauta: entre 16 de janeiro e 04 de abril, dia em que foi demitido, o editor-chefe compareceu a sete (07) encontros, realizados às 11 da manhã. Neste período foram exatas 50 reuniões. Pouco mais de 10% de presença reprova qualquer um.


E se havia tanta ‘interferência do Planalto’, ‘pressão insuportável’, por que o jornalista demitido não pediu demissão antes? Por que a redação não saiu toda junto com ele, como, em carta enviada à direção da empresa, ele tinha dito que iria acontecer?


Mais detalhes: a ‘vítima’ alega que foi pressionanda por uma ‘interventora do Planalto’. O repórter que ouve isso, então, faz o quê? Comprova as acusações, certo? Se houve pressão em favor do governo, é só ver as reportagens e como elas saíram. Os VTs estão no You Tube. Então dá pra verificar se a acusação é séria sem sair da cadeira. Ótimo, até para o jornalismo preguiçoso.


Mas que está nas matérias é só outro detalhe. Oposição falando que é dossiê, governo dizendo que é base de dados. O que faz a TV Brasil? Mostra as duas versões, sem tomar uma delas como definitiva. Não se apropria dos termos que denotam acreditar num ou noutro lado. Fraca a interventora, não? Lê todos os textos e não publica a versão do governo. E permite os dois lados darem suas versões…


Problema inexistente


E a história da CPMF? A pauta surgiu de uma entrevista do presidente do Conselho Nacional de Saúde na Rádio Nacional, na qual ele alertava: com aquele orçamento, depois do corte motivado pela queda da CPMF, o dinheiro acabaria antes que o ano. Pauta aprovada na reunião – neste dia, na presença do editor-chefe. No ar, a reportagem mostrou filas, gente chorando, hospitais aos pedaços. Dizia que o dinheiro acabaria em setembro, mas não citava a CPMF. Ora: matérias precisam responder, sempre, os tais ‘quem, que, como, onde, quando e por que’. Faltava o último item. Logo, havia uma falha nela.


O que chegou ao telespectador foi uma reportagem com as mazelas da saúde sem falar no corte da CPMF. Virou prova de ‘censura’ e ‘jornalismo chapa branca’. Errado. Se foi ao ar (e foi), não houve censura. E não foi chapa branca; foi chapa preta. E como a chapa da TV Pública não tem cor, os responsáveis foram advertidos. Quem aprovou o VT não foi a ‘interventora’. Foi o editor-chefe. Mas isso é só mais um detalhe.


A ‘interventora’ tem mais de 15 anos de experiência em redações de TV em Brasília. É, sim, casada com um assessor do Planalto. Mas o que é que isso prova? James Carvile, famoso conselheiro de Bill Clinton (o que cunhou a frase ‘é a economia, estúpido’) é casado com Mary Matalin, consultora política do partido republicano, adversário de Clinton. Casamento não é problema para gente que tem ética. Geralmente é para quem não tem.


Se há interferência, ela precisa aparecer em algum lugar. Além, claro, da cabeça do jornalista demitido e da manchete dos jornais.


Sem constrangimentos


O jornalista demitido alega que não tinha liberdade de sequer escrever manchetes. Pois bem: os veículos que publicaram a história se importariam de contar ao leitor como são escritas as suas próprias manchetes? Alguém faz isso sozinho? Ou passa por uma série de pessoas, num processo de revisão editorial? É assim em qualquer redação, por questão de controle de qualidade. Jornalismo é atividade conjunta, ainda mais numa emissora pública. Mais até num veículo em formação, no qual turnos de 12 ou 14 horas por dia, para as chefias, têm sido comuns. Menos para o editor-chefe.


A melhor resposta a qualquer acusação de partidarismo ou interferência na TV Brasil vai ao ar todos os dias, às oito da manhã e às nove da noite, nas duas edições do Repórter Brasil, nas emissoras públicas de 21 estados brasileiros. Também está nos noticiário difundido por mais de 500 emissoras de rádio, da Rede Nacional de Rádio. E no conteúdo da Agência Brasil, republicado por incontáveis jornais e na sua própria página na internet. Todos são veículos EBC. Não temos vergonha do jornalismo que praticamos. Não temos constrangimento.


Nem preguiça.

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Jornalista, gerente executivo de jornalismo da EBC – Empresa Brasil de Comunicação