No atual debate sobre a necessária regulação e redefinição do modelo de negócios das comunicações, reaparecem argumentos e justificativas que são velhos conhecidos daqueles que acompanham o setor no país.
Uma das questões críticas refere-se à propriedade cruzada e, portanto, à concentração do setor nas mãos de uns poucos conglomerados privados globais e seus parceiros nacionais. Em geral os defensores dessa ‘tendência’ usam complicados e ininteligíveis argumentos sobre os avanços tecnológicos das comunicações em jargão técnico inacessível ao leigo. Como se trata de um setor intensivo em capital, argumenta-se pela inevitabilidade e irreversibilidade da situação.
A política da inevitabilidade, na definição do professor Thomas Guback, da University of Illinois, nos EUA, significa…
‘…uma política que nos diz que existe somente um caminho, que não existem alternativas. Ela elimina todo o debate acerca da legitimidade daquilo que diz ser inevitável. Ela impede que se levantem questões sobre justiça, poder, ou necessidade. Uma política da inevitabilidade automaticamente resolve todas as questões antecipadamente e assim fazendo, descarta a oposição’.
Na verdade, a política da inevitabilidade funciona como se não fizesse mais sentido debater a respeito daquilo que já foi decidido pelo determinismo tecnológico e pelo volume de capital necessário à atividade empresarial do setor. E, claro, o argumento atende aos interesses dos conglomerados globais e seus parceiros já instalados.
Direito precedente
Outra questão que reaparece, relacionada à primeira, refere-se à impossibilidade de aplicar uma nova regulação a situações de facto já existentes como, por exemplo, a própria propriedade cruzada. Esse é um argumento que foi largamente utilizado à época das privatizações das telecomunicações, na década de 1990.
O diálogo do ex-ministro das Comunicações do governo FHC, Sérgio Motta, já falecido, em entrevista publicada nas páginas amarelas da revista Veja, há quase 10 anos (edição 1505, de 23/7/1997], é emblemático. A reprodução das respostas é parcial, mas não se deturpa o pensamento do ex-ministro:
‘É democrático e pluralista permitir que, numa mesma região, uma única empresa possa ser dona de emissoras de rádio, de jornal, de canais de TV por assinatura e abertas e, talvez até telefonia, como é o caso da Globo no Rio e da RBS no Rio Grande do Sul?
Motta – Não acho que a estrutura de comunicações que temos no Brasil seja justa, a mais adequada. Mas não posso desfazer aquilo que se chama de ato jurídico perfeito. Não posso cassar concessões que estão adequadas à lei e funcionam conforme as regras. (…)
O senhor não quer alterar esse modelo que, na prática, é concentrador e favorece a monopolização?
Motta – (…) A melhor forma de combater a concentração é o que estamos fazendo: distribuir várias concessões de um mesmo serviço. Vamos ter, por exemplo, mais canais de televisão aberta e por assinatura, mais rádios. Isso é saudável, favorece a democracia. Mas não posso proibir que uma empresa que já tem rádio e televisão se candidate para a banda B.
Por que não?
Motta – É assim no mundo todo. (…) Acho que o modelo que adotamos nas Comunicações é muito bom, levando em conta que não posso desfazer atos jurídicos perfeitos’ (…).
Na verdade, não é bem assim no mundo todo. Ao contrário. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Cross-Ownership Rule aprovada pela Federal Communications Commission (FCC) em 1975, mesmo referida a situações futuras, obrigou vários grupos detentores de propriedade cruzada que optassem por continuar sendo proprietário apenas de jornal ou de rádio ou de televisão no mesmo mercado.
Além disso, nos debates que se seguiram a essa regulação, a Suprema Corte estadunidense reafirmou o célebre princípio de que…
‘…quando os direitos de editores de jornais, dos radiodifusores e do público se confrontam, o interesse público deve sempre prevalecer’
…ou…
‘…o direito dos telespectadores e ouvintes precede o direito dos concessionários’.
Princípios liberais
O que há realmente de equivocado quando o debate gira apenas em torno de argumentos e justificativas do tipo da inevitabilidade e da impossibilidade de se desfazer ‘atos jurídicos perfeitos’?
Esquece-se que ele precisa e deve ser feito tendo como referência os princípios garantidores do interesse público – e não apenas do interesse dos atores empresariais que disputam os negócios bilionários em jogo.
E quais são os princípios liberais clássicos para a comunicação democrática? Pluralidade, diversidade e localismo.
A pluralidade – que significa garantir a existência de competição entre prestadores do mesmo serviço; a diversidade – que significa a representação equilibrada dos diferentes interesses e opiniões existentes na sociedade no conteúdo a ser produzido e distribuído; e o localismo – que significa preservar a produção regional e local de conteúdo.
O que se espera, portanto, é que o interesse público seja colocado em primeiro lugar e que não se substituam – novamente – os princípios liberais clássicos apenas pelo interesse dos conglomerados privados globais e seus parceiros nacionais envolvidos na disputa.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)