O debate gerado a partir de uma proposta apresentada pelo Ministro das Comunicações para a implantação de um Canal do Executivo, previsto no decreto de implantação do sistema brasileiro de TV digital, está gerando uma confusão conceitual que faz por merecer alguns esclarecimentos. Confunde-se televisão pública com televisão estatal e, nesse desentendimento das coisas, daqui a pouco estaremos confundindo também suas naturezas e atribuições, que são bem diferentes e não concorrentes, embora complementares.
A nossa Constituição é bem clara quando define, no artigo 223, os três sistemas que compõem o universo televisivo: o privado, o público e o estatal. A TV estatal faz prestação de serviços do governo e apresenta à população o ponto de vista do governo, como componente da variedade de pontos de vista da democracia mídiática. A TV pública, também como componente importante da variedade democrática, é porta-voz da sociedade (da pluralidade de opinião e da diversidade cultural) sem intermediação do governo ou dos interesses da TV privada.
O ministro Hélio Costa apresentou as linhas gerais de uma proposta para um Canal do Executivo, nela embutida a ampliação da TV estatal (atualmente sob a responsabilidade da Radiobrás), sua presença em todo o território brasileiro. O presidente Lula determinou a realização de uma reunião com os ministros da Cultura e da Educação para a sua análise, já que este canal faz parte do conjunto de quatro canais do Estado com criação prevista no decreto: Institucional (executivo, legislativo, judiciário), da Cultura, da Educação e da Cidadania. Ou seja, o ministro das Comunicações está trabalhando na reorganização da tv estatal.
A questão da TV pública, pela diversidade de seus segmentos (canais educativos, culturais, universitários, comunitários) e pela sua responsabilidade de expressar o ponto de vista da sociedade, está sendo trabalhada pelo governo no Fórum Nacional de TVs Públicas, com a participação de todos os setores do governo envolvidos no tema, de todos os segmentos da TV pública e representantes dos outros sistemas de televisão (estatal e privada), do pensamento acadêmico e de atividades relacionadas com a democratização da informação.
Interesse do cidadão
O fórum iniciou suas atividades em setembro do ano passado e culminará em uma plenária em maio, com a intenção de apresentar o desenho de uma nova política para a TV pública, acoplando às providências referentes à migração tecnológica do sistema analógico para o digital um planejamento de expansão e reorganização do sistema público (articulação de redes, produção de conteúdos, modelos negociais, compartilhamento de infra-estrutura etc).
Mas eis que de repente as duas distintas categorias televisivas parecem ser a mesma coisa em declarações de autoridades e na reverberação dessas declarações na mídia. Acontece que o governo federal aspira conferir abrangência nacional aos referidos quatro canais do Estado e, nesse sentido, tem utilizado a terminologia ‘rede pública’ na caracterização do Canal do Executivo ora em discussão, gerando equívocos na compreensão dos objetivos da proposta, cuja natureza se inscreve no fortalecimento do sistema estatal de televisão. Então, em prol da clareza, melhor que trabalhemos todos, o governo, a mídia e a sociedade, com os conceitos corretos.
Há mais uma razão para a confusão. É que, historicamente, os canais estatais e os canais públicos têm estabelecido uma relação de cooperação, às vezes de complementariedade, no que se refere ao compartilhamento de fontes de financiamento, à demarcação de especificidades em relação aos canais privados, à utilização de conteúdos da TV pública pela Radiobrás. Os dois tipos de canais atuam, inclusive, em organismos integrados como a Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (ABEPEC). Essa atuação colaborativa tem recebido a denominação genérica de TV Pública – o que serve para determinados propósitos, mas que não corresponde à realidade da atuação específica da TV estatal, da voz do governo.
No momento em que o país avança na implantação do sistema de TV digital temos uma oportunidade única de desenvolver os sistemas público e estatal de televisão, ampliando as janelas de expressão da sociedade e de prestação de serviços de interesse do cidadão, fortalecendo a capacidade operacional destes sistemas a partir do compartilhamento de infra-estruturas instaladas e conferindo uma conseqüente maior capilaridade social destes veículos.
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Secretário Nacional do Audiovisual do Ministério da Cultura