Na última semana, uma carta, assinada por 67 entidades globais e de países como EUA, Paquistão, Nigéria, Holanda, Colômbia e Brasil expressou uma série de preocupações a respeito do programa Internet.org, criado por Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, com o objetivo de conectar pessoas sem condições de pagar pelo acesso.
Entre as preocupações, a de que a iniciativa de Zuckerberg viola a neutralidade de rede, traz riscos de segurança e privacidade, ameaça a liberdade de expressão e prejudica a inovação. Apesar da boa intenção do Internet.org, as entidades apontam que a iniciativa oferece uma versão pobre da experiência online, limitada apenas a serviços aprovados pelo Facebook e pelas operadoras com as quais se alia.
“O modelo do Internet.org – que dá aos usuários um gostinho de conexão antes de sugerir que comprem pacotes de dados – falha em reconhecer a realidade econômica desses milhões que não podem pagar por esses planos”, diz a carta.
O grupo de autores do documento, que conta com seis coletivos brasileiros, se diz “especialmente preocupado” que o fornecimento de conexão a populações pobres esteja sendo usado como “justificativa para violações de neutralidade de rede”.
Zuckerberg chegou a se pronunciar sobre a questão após ver seu programa na Índia ser abandonado por operadoras e serviços em meio a uma forte campanha em favor da neutralidade no país. Para ele, essas discussões “não devem ser usadas para impedir que as pessoas mais prejudicadas na sociedade ganhem acesso”.
“É como dizer que alimentação saudável é um conceito muito bacana, mas que só vale para países ricos e que alimento com alto teor de gordura já está ótimo. Ou que moradia digna é luxo e um barraco na favela já está de bom tamanho”, rebate a advogada Veridiana Alimonti, do Intervozes, uma das organizações signatárias da carta.
Para Alimonti, o fato de uma oferta como a do Internet.org “fazer sentido” denuncia um “problema de conectividade” no País. “Mas a solução para o problema não é enveredar por essa fração de internet vendida como internet. A Internet.org é um puxadinho mal-feito que turva o real problema que é a necessidade de se ter políticas e incentivos para que as pessoas possam ser de fato incluidas digitalmente.”
A Internet.org chega ao Brasil em junho, em Heliópolis, bairro da periferia de São Paulo, conforme prometeu Zuckerberg em abril, quando se reuniu com a presidente Dilma Rousseff para o anúncio da parceria.
No País, segundo a pesquisa TIC Domicílios, do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (Nic.br), entre setembro de 2013 e fevereiro de 2014, 42% dos brasileiros afirmaram nunca terem tido qualquer acesso à internet. Desses, 26% nunca o fizeram por não ter como pagar pela conexão. Em fevereiro, a presidente anunciou sua intenção de garantir internet “a todos os brasileiros” até 2018.
Competição
A Internet.org se vale de uma prática adotada por operadoras em diversos países chamada “zero-rating”. Trata-se de um modelo de negócio para atração de clientes no qual a operadora, após o cliente esgotar sua franquia de dados, permite que ele continue usando um serviço – geralmente popular – sem custos. É o caso da TIM, que no Brasil oferece o uso de WhatsApp nessa modalidade.
No Brasil, a discussão está em pauta na regulamentação do Marco Civil da Internet, processo que está sendo conduzido no Ministério da Justiça, mas que se encerrá na mesa da presidente, em forma de decreto. O texto final poderá continuar permitindo o zero rating, bem como, em outra situação, poderá proibir o modelo de negócio, e a presença do Internet.org no País por consequência.
“Trata-se de um tema complexo e acho que as discussões hoje estão longe de serem maduras, e há muitas questões a serem empiricamente validadas ainda”, diz o advogado e pesquisador especialista em neutralidade de rede, Pedro Ramos. “Mas de uma perspectiva concorrencial, estratégias de zero rating podem levar a uma maior concentração de mercado, gerando consequências adversas à inovação, aumentando as barreiras para quem deseja competir com players já estabelecidos e protegidos pelo zero rating.”
A competição saudável foi inclusive um dos fatores que permitiram o surgimento do próprio Facebook, que, segundo Ramos, é o que motiva o empreendedorismo, que cria “novos produtos e serviços” para atender as expectativas de um novo mercado. “Todavia, estratégias de zero-rating tendem a romper esse ciclo, alterando a dinâmica da inovação.”
Articulação
De olho nesses efeitos, um grupo de empreendedores na área de tecnologia se organizou e levantou a campanha “Startups pela Neutralidade de Rede”. Gustavo Gorenstein, fundador da Poup, encabeça o movimento ao lado de Tallis Gomes, fundador da Easy Taxi, e Gustavo Caetano, da mineira Sambatech. Ele explica que a articulação começou logo que o debate sobre a regulamentação do Marco Civil foi aberta no MJ.
“Não havia ninguém se pronunciando sobre o assunto. Enquanto isso, a gente sabia que as ‘telecoms’ estavam fazendo lobby”, diz Gorenstein. “Se a gente não se posicionasse, íamos pecar por omissão e pagar o preço depois.”
Segundo o empreendedor, cerca de 300 startups brasileiras assinaram a petição da campanha. O governo percebeu o movimento e se reuniu com o grupo. “Isso é importante. Precisamos resolver isso agora na regulamentação. Se o texto continuar ‘estranho’ como está, isso pode minar o ecossistema de startups no Brasil.”
O empreendedor, no entanto, pondera que mesmo entre empresas de tecnologia não há consenso. “A questão de zero rating é a que tem menos concordância, porque a oferta de acesso gratuito é bom, mas da forma como é feito hoje, o preço que se paga é caro demais.”
Luiz Felipe Barros, diretor-geral do Viber no Brasil, app de mensagens que compete com o WhatsApp, se divide. O executivo entende que o Internet.org é ruim, mas o zero rating é um benefício. “O Viber faz zero-rating com operadoras em alguns países. Achamos uma prática competitiva e interessante”, diz. “Mas o Internet.org é o programa de uma corporação para beneficiar a si e a serviços parceiros. A universalização da internet é importante, mas tem que ser a internet real, e não a de um grupo de empresas.”
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Murilo Roncolato, do Estado de S.Paulo