Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tempo de avançar o debate sobre a mídia

A cada comentário crítico que alguma autoridade pública faz sobre a imprensa (mídia), jornalistas, analistas, cronistas e até mesmo observadores críticos se apressam em responder à crítica evocando a velha metáfora do jornalismo como mensageiro. Lançam mão do argumento de que ‘não se pode culpar o mensageiro pela mensagem que traz’ ou lembram que não foi a imprensa (mídia) que inventou as ‘ladroagens e escândalos’ praticados por políticos dentro e fora do governo.


Assisti a um irritado jornalista em programa de TV afirmando que ‘os jornalistas não inventam nada e tudo sobre o que escrevem foi a eles passado por alguma fonte’ (sic). Os jornais, segundo o argumento, publicam fatos, mostram a realidade. Dessa forma, nada mais impróprio, mais descabido do que as críticas que autoridades insistem em fazer da indispensável cobertura que a imprensa fez e continua fazendo das ‘ladroagens e escândalos’.


Apesar de repetitivo (tratei do tema várias vezes ao longo dos quase três anos que cometo meus artigos neste Observatório), não posso deixar de observar três aspectos envolvidos na questão.


Primeiro, a imprensa (mídia) não gosta e muitas vezes não admite ser criticada. Embora a crítica seja a sua tarefa preferida, ela não suporta delegar ou reconhecer que outros possam ter o mesmo direito, sobretudo se a crítica se refere à sua própria atuação. Em geral, a imprensa e os jornalistas padecem do mal que os gregos clássicos consideravam o mal maior, a hybris, isto é, a soberba, a arrogância. Não reconhecem suas limitações e se colocam acima do bem e do mal.


Segundo, é realmente triste ver profissionais importantes da grande mídia brasileira que ignoram completamente o que há anos se passa no universo da pesquisa e dos estudos sobre a prática do jornalismo e da profissão de jornalista.


Construção da realidade


Claro, a metáfora do mensageiro exime o jornalista e a imprensa de qualquer responsabilidade em relação ao conteúdo da mensagem que transmitem. Isso estimula – consciente ou inconscientemente – seu uso freqüente como argumento de defesa.


Mas, será que os jornalistas, analistas, cronistas e observadores críticos não sabem que nas últimas décadas tem havido um esforço importante em várias instituições ao redor do globo – algumas financiadas por grandes grupos de mídia – para estudar o jornalismo como área específica do conhecimento? E que a velha ‘teoria do espelho’ – na qual a metáfora do mensageiro se baseia – está totalmente superada como explicação para a prática do jornalismo?


O que dizer dos estudos sobre o ‘jornalismo sitiado’, a sociologia do jornalismo, as pesquisas sobre construção da notícia (newsmaking), enquadramento (framing) e agendamento (agenda setting) ou sobre os ‘escândalos políticos midiáticos’?


Será que esses jornalistas, analistas, cronistas e observadores críticos ignoram que o jornalismo é praticado no contexto de uma subcultura própria; de rotinas produtivas que se transformam em normas; e de interferências – explícitas ou não – da posição editorial, vale dizer, das opções e interesses daqueles que são ou proprietários ou concessionários da grande mídia?


Será que eles não sabem – pela sua própria experiência profissional – que as notícias são construções que passam por uma seleção, sofrem um determinado tratamento e podem ocupar espaços/tempos de valoração diferente?


Será que eles não sabem que a imprensa (mídia) pode omitir a informação e que a omissão pode ser mais manipulativa do que a saliência?


Enfim, será que eles não sabem que o jornalismo é ele próprio um importante construtor do que chamamos de realidade?


Associações indevidas


E, terceiro, precisamos superar o falso dilema entre crítica da imprensa (mídia) e ditadura, autoritarismo, ausência de liberdade. Nas sociedades democráticas, a crítica da mídia é um direito que pode e deve conviver com a garantia de todas as liberdades, individuais e coletivas. Identificar, sem mais, qualquer crítica como uma ‘ameaça à liberdade de imprensa’ é fugir das responsabilidades que a mídia como instituição e seus jornalistas devem ter nas democracias.


O debate sobre a mídia e seu papel fundamental nas democracias contemporâneas precisa continuar. No Brasil, ele se tornou indispensável como parte importante da nossa difícil caminhada para a consolidação democrática. Neste contexto, as críticas à imprensa (mídia) por parte de autoridades públicas – ou por qualquer outro – precisam e devem ser respondidas por aqueles que as julgam incorretas.


Soberba e arrogância, argumentos como ‘não temos nada a ver com isso; não fomos nós que criamos as ladroagens e os escândalos; eles estavam lá e nós só os noticiamos’ e o refúgio nas associações indevidas com os regimes ditatoriais não correspondem à qualificação profissional que jornalistas, analistas, cronistas e observadores críticos devem ter e, menos ainda, à importância que a imprensa (mídia) tem no nosso país.


Convenhamos: já é tempo de avançar no debate.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)