Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tocou o telefone. Será a doença chamando?

Na edição anterior deste Observatório (nº 506), o prestigiado Alberto Dines publicou o artigo ‘Por que não abrir o jogo?‘, relativo ao noticiário de imprensa e à questão de celulares causarem câncer. Aborda especialmente The Economist e critica o fato de a mídia nacional dar pouca atenção a essa polêmica, comportando-se como o avestruz. Respeito muito Dines e suas posições, mas acredito que é importante contextualizar melhor a questão.


Os telefones móveis começaram a se difundir com tanta importância no mundo, e mesmo entre nós, que o fato de levar com freqüência ao ouvido um aparelho que aquece e emite radiofreqüência levou a algumas dúvidas razoáveis no quesito saúde.


Provavelmente o primeiro caso a ganhar espaço foi, ironicamente, o de um neurocirurgião de Nova York que desenvolveu um neurinoma de acústico, tumor benigno e tratável, mas através de cirurgia delicada e que freqüentemente deixa seqüelas. Ele atribuiu seu tumor ao celular e pleiteou indenização da fabricante do aparelho e da operadora, não aceita pela Justiça.


Alguma lógica havia no pensamento do médico nova-iorquino: vários anos antes, seguramente antes do advento da telefonia celular, um evento chamou a atenção nos EUA: uma escola rural isolada estava apresentando uma incidência de leucemia dentre suas crianças estudantes muito acima do esperado para a média nacional e daquele estado. Vários pesquisadores e institutos se lançaram a observar o fenômeno, e nenhuma característica especial, familiar, individual, alimentar, ambiental e assim por diante foi observada, para intrigar ainda mais os interessados.


A única coisa próxima à escola era uma antena de alta tensão. Seria ela a causa responsável?


Medições da quantidade de irradiação eletromagnética e outras foram exaustivamente realizadas, e nada se encontrou de diferente em relação às inúmeras outras antenas existentes no país e no restante do mundo. Experimentos em animais de experiência também nada acrescentaram. Pois bem: nenhuma evidência foi obtida com relação a causa e efeito da antena e da leucemia, mas isso não necessariamente quer dizer que a mesma não poderia ser responsável: tumores têm biologia complexa, diferem muito entre si, há características de genes que favorecem ou inibem o crescimento tumoral, participação do sistema imunológico (de forma cada vez mais complexa, como se entende hoje em dia) e talvez o mais importante: o tempo.


Certamente o tempo de exposição àquela emanação da antena tivesse durado dez ou mais anos nas crianças que tinham aquela como única escola para estudar, e os estudos não chegaram a tanto. Como exemplo, cada vez mais foram sendo acumuladas evidências de que o fumo causa câncer, sob variadas formas de indução, mas a conclusão definitiva veio apenas após trinta anos de experimento observacional, ou seja, milhões de pacientes fumantes ou não avaliados sob rigorosa metodologia para se afirmar positivamente o que hoje parece óbvio.


Velocidade de crescimento


O motivo provavelmente mais recente como gancho para algumas matérias, não apenas em publicações do exterior, mas em algumas poucas notas compiladas por aqui em certos jornais e revistas, e mesmo na internet, foi um alerta dado pelo oncologista americano Ronald Heberman a esse respeito.


Quem é o medico citado? Um dos mais respeitados especialistas na área nos EUA – fundou e foi o primeiro diretor do Instituto do Câncer da escola médica da Universidade de Pittsburgh, e atualmente é diretor do Hospital de Oncologia da mesma instituição, uma das doze a fazer parte do comitê nacional do prestigiado Instituto Nacional do Câncer da America do Norte. Publicou mais de setecentos trabalhos na área em revistas com revisão por pares, e já há algum tempo se interessou pelo assunto.


Há pouco, em 25 de setembro de 2008, foi o principal conferencista do seminário ‘Tumores e câncer cerebral: o que diz a ciência?’, da qual participaram peritos dos EUA, França, Itália, Bélgica e Holanda. No seu discurso, Heberman acrescenta que após a publicação do mesmo recebeu apoio de instituições da Alemanha e da Índia.


Antes de propriamente entrar nas pertinentes observações de Heberman, um breve comentário pessoal: tive o privilégio de por duas vezes fazer meu fellowship na Universidade de Pittsburgh, na Pensilvânia. Embora não esteja em geral citada entre as de maior grife, como Harvard (passei também um tempinho lá), Yale, Darthmouth, Brown, Mayo Clinic, UCLA ou Stanford, devo dizer que fiquei muito impressionado não apenas com o centro médico da instituição, mas também com o excepcional sistema de ensino e pesquisa. Posso dizer que, além da experiência de vida, muito aprendi por lá (foi em Pittsburgh que Salk desenvolveu a primeira vacina contra poliomielite, que lhe valeu um Nobel, e onde se desenvolveu o transplante de fígado, assim como a descoberta dos mecanismos e da cirurgia curativa para a incômoda e não rara neuralgia do nervo trigêmeo).


Casos da oncologia chegavam à neurologia e à neuroimagem, evidentemente, e foi possível constatar o avançado estágio da unidade de oncologia. Também lá se desenvolveram técnicas neurocirúrgicas avançadas na área da estereotaxia, ou seja, de se atingir milimetricamente a área do sistema nervoso que se pretende operar, sem lesar tecido normal, com auxilio de tomografia e ressonância, além de equipamentos computadorizados. E uma das áreas de maior progresso, pesquisa e ensino em imagens médicas, notadamente a chamada radiologia invasiva e a ressonância magnética, além de vários avanços na física básica aplicada a esse último método, em colaboração com uma das mais respeitadas instituições tecnológicas dos EUA, junto com o MIT e o Caltech, a Universidade Carnegie-Mellon.


Recordações à parte, algumas palavras sobre dados estatísticos da Organização Mundial da Saúde referentes a tumores cerebrais e eventual uso do celular: em primeiro lugar estaria o já citado neurinoma do acústico, seguido dos gliomas e, em maior número, dos meningeomas.


A neuro-oncologia é diferente da oncologia geral: como sabido, célula nervosa ou neurônio morto não se regenera, ao contrário da maioria das células do corpo. Conseqüentemente, tumores do próprio neurônio não existem, por definição e na prática. Alguém pode questionar: mas e os neurinomas ou neuromas? A nomenclatura é dada por causa de uma estrutura extra-neuronal, mas intrinsecamente ligada a ele, a bainha de mielina. E o que cresce, então? Nossos bilhões de neurônios são interligados pelas chamadas células de sustentação, que possuem funções metabólicas e nutricionais – são as chamadas células da glia. Nesse sentido, pode ocorrer a divisão celular levando a crescimento tumoral nas mesmas, de um pequeno astrocitoma que raramente afetará a longevidade do paciente, a um dramático e invasivo tumor, o glioblastoma multiforme ou glioma grau IV.


Apesar de ser proveniente de uma célula de sustentação, esse tumor cresce muito rapidamente, vai invadindo áreas circunjacentes e sua resposta terapêutica é praticamente nenhuma. Após alguns achados clínicos, um exame de imagem sugestivo de tumor obriga a realização de uma biopsia cerebral, hoje realizada pelo método estereotáxico; e se for encontrado um glioblastoma, ele deve ser radicalmente extirpado cirurgicamente. Tratamentos rádio ou quimioterápicos praticamente não têm efeito algum, e a sobrevida não passa de dois anos.


Já os meningeomas provêm das membranas que protegem o cérebro, as famosas meninges (cuja infecção leva às célebres meningites). Podem ter velocidades muito diferentes de crescimento, a cirurgia costuma ser resolutiva, respondem à radioterapia e em geral são curáveis.


Conflito de interesses


Um conceito difundido é o de que tumor maligno leva a metástases (espalham-se pelo corpo) e os benignos, não. Isso não vale exatamente para a neurologia: tumores malignos propriamente ditos, como os de pulmão, mama e assim por diante, não existem por causa do tipo de célula do sistema nervoso. A malignidade passa então a ser definida pela localização do tumor (há os inoperáveis) e pelo ritmo de crescimento e resposta as variadas formas de tratamento.Mas nunca um tumor cerebral dá metástase, nem o temido glioblastoma? Conceitualmente não, uma vez que a corrente sanguínea vai toda para o cérebro, e não o contrário, e esse é o principal meio de disseminação de tumores. Na neuropatologia há o registro de um caso clássico de alguns anos atrás, de importante centro médico americano, em que um glioblastoma conseguiu enviar células suas ao pulmão de um paciente. Caso fartamente documentado e provado, mas não explicado.


Voltando ao tema central, supondo que antenas pudessem levar a câncer, como a leucemia da escola, esperaríamos observar muito mais casos ao redor do mundo, e isso ainda não aconteceu. E as células neuronais são diferentes das outras, mesmo as da glia, e isso pode servir tanto para justificar como para eliminar a hipótese da relação entre celulares e tumores.


O tema ganhou importância ainda maior quando a Organização Mundial da Saúde constitui experts de todo o mundo para estudar a questão: a conclusão, por ora, do chamado Interphone Protocol, foi a de que não há dados científicos para embasar esse receio. Contudo, vários outros pesquisadores importantes fizeram serias objeções a esse estudo: várias universidades foram financiadas por fabricantes de aparelhos e ou operadoras. Várias irregularidades metodológicas e estatísticas foram anotadas. E observou-se afoiteza na divulgação dos resultados. É claro que daí nasce a dúvida: temos em mãos uma história semelhante a da indústria do tabaco, que financiou várias pesquisas médicas a seu favor? É evidente que há no mínimo conflito de interesses, e as pesquisas não deveriam ter como financiadores os eventuais grandes beneficiários econômicos das mesmas.


Táticas de prevenção


Dos comentadores do OI, agradeço as pertinentes observações do Jonas, técnico em eletrônica, comparando os tubos CRT aos monitores LCD. E no passado não era consenso que TV gerava radiação e que as crianças deveriam ficar afastadas das mesmas? Eu mesmo só sentava perto do aparelho sem a vigilância parental. E hoje em dia ninguém fala mais no assunto, não só porque está mudando tecnicamente o sistema dos monitores de TV, mas também porque ninguém mostrou um único caso de complicação médica devida a exposição ao aparelho (a não ser ignorância,talvez…).


Claro que também houve a moda dos microondas, e o câncer pode (na maioria das vezes) aparecer sem nenhuma causa detectável. Isso não quer dizer que não haja fatores predisponentes. O difícil é comprovar os mesmos, e foi o que o professor Heberman fez. Analisou os dois lados da questão, extensamente, e sua conclusão principal é a de que não há ainda bases cientificas solidas o suficiente para banir o celular. Contudo, encontrou alguns estudos que mostraram, através de métodos sofisticados, que o cérebro da criança absorve a onda eletromagnética mais que o de adultos. Daí ele ter comentado, e que virou manchete em vários veículos jornalísticos do exterior, a frase ‘Mantenha as crianças longe do celular!’.


Ora, em meados da década de 1980 entrou em operação comercial a ressonância magnética, que nada mais é que um gigantesco imã que emite pulsos de radiofreqüência, e hoje é mais utilizada em exames de cabeça. Até agora não foram relatados casos de piora ou aparecimento de tumores em pacientes e na equipe de saúde que opera os equipamentos. Mesmo assim, Heberman dá algumas recomendações à luz dos conhecimentos atuais:


** na literatura médica adequada há cinqüenta estudos que mostram firmemente a relação entre tumores e celulares; ainda muito pouco, mas bem desenhados metodologicamente e sem conflitos de interesse aparentes;


** embora se fale mais na relação com tumores cerebrais, os aparelhos são comumente levados no bolso e na cintura; em tese, por inferência deveria ser observado também um maior aumento na incidência de câncer de pulmão, mama e testículos;


** falar ao telefone ao dirigir, por exemplo, leva a alterações cognitivas e distração: nada tem a ver com o câncer, mas pode ser causa de fatalidade;


** alguns pacientes com marca-passo cardíaco tiveram problemas comprovados com uso de celulares, mas estatisticamente muito pequeno o contingente;


** emissões eletromagnéticas causam lesões celulares e do DNA, uma das principais causas biológicas de câncer, e celulares as emitem – mas será em dosagem suficiente?


** a exposição à emissão eletromagnética do celular, biologicamente, é próxima do zero;


** a exposição máxima permitida em termos de segurança em saúde e de 0,1 microW/cm2; uma exposição média durante a vida deveria ser menor que 0,01 microW/cm2, uma vez que existem características ainda não explicadas da resposta do tecido cerebral, para maior garantia;


** não deixe crianças usarem celulares;


** evite usar o aparelho diretamente no ouvido: prefira fones de ouvido com microfones, headsets ou Bluetooth;


** não carregue o celular junto ao corpo na maior parte do dia;


** em conversações prolongadas, troque de lado freqüentemente, para diminuir a exposição em um mesmo local;


** para conversações prolongadas, também, use telefones convencionais, e não os sem fio, pois se houver riscos por exposição radiomagnética, serão os mesmos do celular;


** telefones finos fazem a radiação ficar mais próxima do corpo;


** prefira mandar mensagens a conversações, pois a exposição e quase nula.


Aí temos uma série de dados técnicos (mil perdões aos eventuais leitores) e algumas sugestões, enquanto a ciência não chegar a alguma conclusão mais definitiva. Na dúvida, é melhor prevenir, mas sem criar pânico ou alarme, pois não há nada disso em jogo por ora: dados estatísticos podem ser ‘torturados’ para dizer o que o investigador quer. Imagine comparar o número de assinantes de telefone de uma cidade com o número de aparelhos, e fazer uma média simples. No outro ano, fazer a mesma coisa e chegar a alguma conclusão sobre telefonia – tem alguma lógica? Ou a recomendação européia de que os casais atualmente têm 2,6 filhos em média: como completar a cota, com 0,4 de uma criança? Matemática tem seus absurdos também, especialmente em áreas com tantas variáveis como a biologia…


Espero ter contribuído e não torrado muito a paciência de quem chegou até aqui. Agora, leitura ideológica da questão, ai também não – comercial até vá lá. E como dizia Tancredo Neves (especialmente válido nesse tempo de grampos), o telefone é um aparelho inventado para você marcar uma reunião à qual não vai comparecer.


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PS: Como os celulares são freqüentes em nossos presídios, caso os dados mais assustadores se confirmem, não seria uma forma de pena de morte?

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Médico, mestre em neurologia pela Unifesp; São Paulo, SP