Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Toda unanimidade é burra

Confesso que nunca entendi o significado da frase do título, atribuída a Nelson Rodrigues. Diversas vezes me apanhei divagando sobre o que aquele autor tinha em mente quando a proferiu. Simplesmente, eu não conseguia enxergar o que ele tinha enxergado quando a disse. Até o dia 1º de maio de 2006.

Nessa data, feriado muito bem-vindo por todos nós, ansiosos por um fim de semana maior que apenas o sábado e domingo, como todos sabem, o presidente da Bolívia, Evo Morales, decretou a nacionalização das reservas de gás natural de seu país, fazendo uso de uma teatral ocupação de refinarias pelas tropas do bravo exército boliviano. Quanto à análise se o ato do presidente boliviano é bom ou mau, deixo-a para outra oportunidade. Isto porque, pelos dados que foram exibidos durante toda a semana, pelas diversas empresas de mídia – jornais, emissoras de TV e de rádio, não é possível concluir sobre o mérito do ato do presidente Morales. Explico.

Invariavelmente, tudo o que li, vi e ouvi nos diversos noticiários a que tive acesso foram reações raivosas, iradas por parte de políticos, empresários e público em geral – se é verdade que o Brasil tem 180 milhões de técnicos de futebol, a última semana me levou a pensar se não temos também, ao menos, uns 100 milhões de espertos em extração de gás natural –, reações que se dividiam sempre em duas direções:

a) a atitude ‘abusada’ desse ‘paiseco’ (as aspas e este neologismo são meus), em afrontar o Brasil, rompendo regras de direito internacional, desrespeitando contratos firmados anteriormente;

b) a fraqueza da diplomacia brasileira, que se deixou agredir dessa forma, sujeitando-se praticamente de forma passiva à atitude insolente desses ‘latinos’.

A mídia tupiniquim comportou-se com a arrogância dos imperialistas, que até poderia ser admitida em jornalistas desde que tratassem o assunto como determina o ofício. Muito se ouviu que a Bolívia é um país miserável que se tornará ainda mais miserável, pois a Petrobras e outras empresas estrangeiras não mais investiriam no país (em minha modesta opinião, chantagem barata). Muito se escreveu sobre o jogo duplo do presidente Hugo Chávez, no papel de ‘tutor’ de Evo Morales. Um conhecido meu chegou a sugerir que fossem ‘plantadas’ bombas nas dependências da Petrobras Bolívia e mandar tudo pelos ares, em resposta a essa afronta.

Não me lembro de reações tão enérgicas quando surgiram na imprensa notícias sobre negócios obscuros ocorridos na privatização de empresas estatais. Não vejo O Globo, O Estado de S.Paulo, a Folha de S.Paulo, a Veja (estou ansioso para ver a capa da revista desta semana; afinal, o assunto é um ‘prato cheio’ para uma daquelas capas bem sensacionalistas que já estamos acostumados a ver), a Época ou outro veículo de mídia qualquer reagir com tamanha indignação a respeito da venda da Light, no Rio de Janeiro, ou do Proer, nos tempos do príncipe sociólogo. Com exceção de CartaCapital, não enxergo raiva equivalente quanto aos negócios de S. Exa. Daniel Dantas.

Novo diabo

Como eu disse, não discuto se o ato do presidente Evo Morales é bom ou mau. Mas gostaria de ter alguns esclarecimentos, que a mídia verde-amarela poderia dar:

a) qual é a situação social na Bolívia? Como está sua taxa de emprego/desemprego, seus indicadores econômicos e sociais?

b) quanto à miséria do povo boliviano, como era antes das empresas petrolíferas estrangeiras se instalarem no país? Como ficou depois que elas iniciaram suas atividades? Em que essas atividades reverteram em benefícios para o povo boliviano?

c) as revoltas populares recentes (década de 1990 e entre 2001 e 2005) a respeito da lei de hidrocarbonetos, por que e como ocorreram? E o que dizia essa lei?

Sinto-me como se estivesse na Matrix, em que tudo ocorre ao meu redor e parece muito bem-explicado, sem que, no entanto, as respostas estejam ao alcance de todos nós. E, nesse meio-tempo, a indignação midiática repercute sobre essa entidade abstrata conhecida como ‘opinião pública’, que se enche da ira propagada por jornais, rádio e televisão e retroalimenta a Matrix, que pode continuar a emular mais ira, num ciclo contínuo.

Não nego que a imprensa tenha direito a uma opinião. Mas é seu dever informar ao distinto público sobre todas as circunstâncias de um acontecimento, em vez de apenas apontar um novo diabo por semana.

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Servidor público e estudante de História da Universidade de Brasília