O debate anda solto. Nunca se discutiu tanto a televisão pública. Até Lula afirma que não quer TV chapa-branca. Mas o tema ainda exige explicações.
O produto da televisão pública é a programação, voltada para a formação crítica do telespectador. O produto da televisão comercial é a audiência, baseada no entretenimento. Na TV estatal, o produto é a divulgação de ações e atos do Poder Executivo.
São televisões complementares, segundo a sábia ordenação da nossa Constituição Federal.
TV pública, portanto, não se confunde com TV estatal nem com TV comercial privada. Está eqüidistante do poder e do mercado. Programação, linguagem e objetivos diferem significativamente dos da comercial e da estatal. Comum a todas elas, apenas os princípios da Constituição: os valores éticos e sociais da família, a regionalização da produção cultural, artística e jornalística e o estímulo à produção independente.
A proposta de uma rede nacional de televisão pública do Executivo, apresentada pelo ministro Hélio Costa, pareceu a todos tão desnecessária quanto inconveniente. Desnecessária porque já existem televisões institucionais dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo.
Inconveniente porque gastar 250 milhões de reais nesse projeto é direcionar mal o dinheiro do público. Mas a proposta teve um mérito: colocou para a sociedade a discussão da televisão pública. Seus conceitos são desconhecidos por quem paga a conta e usufrui suas programações, pelos políticos que não distinguem o público do privado e mesmo por bons jornalistas que sabem muito pouco a respeito do assunto, preocupados que estão com a medição das audiências.
O Brasil possui 21 emissoras abertas, geradoras públicas de televisão, nos Estados. Divulgam programações para 1.561 retransmissores e atingem 2.911 municípios. Fundadas entre 1967 e 1983, têm hoje um quadro de recursos humanos com 5.680 empregados. Seu produto é a programação educativa, cultural e informativa para crianças e adultos.
Embora a audiência não seja sua preocupação principal, a televisão pública desfruta de uma presença significativa na maioria dos Estados, onde suas programações locais mantêm ótimos níveis de audiência.
Em São Paulo, a TV Cultura não disputa, mas se situa entre as quatro televisões com melhor ‘share’ (audiência de televisões ligadas). Sua programação está em primeiro lugar nos quesitos independência editorial e qualidade, em recente pesquisa do ‘Meio e Mensagem’. É uma das televisões mais premiadas do mundo. Conquistou três Emmy dos quatro recebidos pelo Brasil. Ganhou o Prix Camera. Só foram concedidos dois pela Unesco, um para a Cultura e outro para a BBC, desde que o prêmio existe.
No farisaico capítulo dos custos, a discussão chega a ser ridícula. A BBC, que é a melhor televisão pública do mundo, gasta 2,8 bilhões de libras esterlinas por ano -e acha pouco, ante as novas perspectivas pedagógicas da televisão digital.
No Brasil, a Globo tem um orçamento de quase 3 bilhões de reais. A TV Cultura, que dispõe do maior orçamento, gasta por ano cerca de 140 milhões de reais, dos quais apenas 80 milhões são repassados pelo governo do Estado. Nos demais Estados, à exceção da Bahia, de Minas, do Paraná e do Rio Grande do Sul, a dotação quase não paga o pessoal. Em Santa Catarina, a receita anual é de 180 mil reais, isto é, 12 mil por mês, menos que o salário de um deputado.
Se não fosse a TV Rá Tim Bum, o público infantil só teria a programação estrangeira importada pelas televisões a cabo. E o programa ‘Roda Viva’, que pauta a imprensa brasileira? E a música erudita, que só passa na televisão pública? E a música popular brasileira, relegada ao esquecimento, não fossem as ‘públicas’? E o ‘Sem Censura’ (TVE), que instrui as donas de casa nas tardes de cada dia? E o Carnaval negro da Bahia, que só a TVE local passa? E o ‘Catalendas’, diretamente do Pará para a rede pública? E o ‘Café Filosófico’, com 60% de audiência na classe C? E o ‘DOC TV’, o maior projeto cultural da produção independente nacional, coordenado pelas televisões públicas? E o jornalismo público, que propõe a compreensão do acontecimento, e não o espetáculo da notícia?
Esses são os valores da televisão pública. Subestimá-los significa uma compreensão baixíssima do que é bem público. Por isso mesmo, achamos que a criação de uma nova rede estatal não se justificaria. Lula afirma que não será isso, mas uma nova rede pública, no estilo de televisão pública.
Chegou a dar como exemplo a TV Cultura. A sociedade, contudo, deverá ficar atenta aos eventuais desvios.
O Fórum Nacional de Televisão Pública, convocado pelo próprio governo com todas as instituições do campo público de televisão, será a melhor ocasião para discutir a independência, a sobrevivência e o papel das televisões públicas, além de propor uma legislação decente para a concessão de outorgas.
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Jornalista e escritor, presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e da Abepec (Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas e Culturais)