No domingo (2/12) estreou no Brasil a transmissão digital dos sinais de televisão. Cercada de pompa por emissoras e governo federal, com direito a cerimônia com presença do presidente da República transmitida em cadeia nacional, a novidade vem sendo apresentada como um novo momento na história da televisão, hoje presente em mais de 95% dos lares brasileiros.
‘A TV ficará mais próxima do telespectador, oferecendo qualidade superior de imagem, maior número de canais, interação do público com a programação e transmissão perfeita para TVs, TVs em ônibus, trens e outros transportes coletivos’, afirmou Lula resumindo as pretensas funcionalidades da nova tecnologia. Para especialistas e estudiosos entrevistados pelo Observatório do Direito à Comunicação, no entanto, a TV digital que entrou no ar esta semana utiliza nova tecnologia, mas mantém o modelo analógico de existente atualmente.
O fato pode ser percebido justamente pelo não aproveitamento das possibilidades listadas pelo presidente. A primeira delas é a multiplicação do número de programações em até seis vezes. Embora Lula tenha manifestado na cerimônia a oportunidade de termos ‘vários canais’, citando como exemplo aqueles reservados aos ministérios da ‘Educação, Saúde e uma TV pública federal’, a transição deixará pouco espaço para novas programações. Isso por que foi dado às emissoras, para a transmissão em digital, o mesmo espaço que elas utilizam para a transmissão analógica, embora a nova tecnologia demande menos faixa de freqüência.
Esta decisão, aliada ao mau uso do espectro atualmente (com emissoras que não prestam um serviço público de qualidade mínima), resultou na sobra de poucos ou nenhum canal em grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro, impedindo a entrada de novos agentes na produção e difusão de conteúdo audiovisual. ‘Com o favorecimento aos operadores de TV, mantém-se, no mínimo, a concentração no setor, o que dificulta a democratização que a TV Digital poderia trazer com a entrada de novos atores, especialmente os não hegemônicos, locais e independentes’, lamenta o professor César Bolaño, pesquisador e autor de livro sobre o tema.
Interatividade?
Outro exemplo de potencialidade que está ausente nesta primeira fase da TV digital brasileira é a interatividade. Na cerimônia de lançamento em São Paulo, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, afirmou que ‘a população terá acesso a informações e serviços públicos, marcará consultas médicas, receberá e enviará informações pela TV’. Entretanto, estes serviços são uma aposta para o futuro e não uma realidade do presente. Os conversores (aparelhos que ‘lêem’ o sinal digital para ser assistido pelo televisor analógico) colocados no mercado não possuem o software que realiza este tipo de operação.
Um problema adicional é que este programa, o middleware Ginga, seria a única tecnologia brasileira presente em todo o padrão digital utilizado no Brasil. No entanto, embora o ministro das Comunicações, Hélio Costa, diga que há acordos em andamento para a inserção da inovação nos conversores, hoje não há qualquer previsão de quando isso será feito. Para Gustavo Gindre, pesquisador da UFRJ e integrante do Intervozes, o motivo da ausência de interatividade não é tecnológico, mas econômico.
‘Não há interatividade porque os radiodifusores não querem. Primeiro, porque o cidadão que fizer uso destes serviços estará deixando de assistir a programação das emissoras. E isso representa perda de audiência e, portanto, de faturamento.’ Além disso, acrescenta Gindre, ‘a interatividade demandaria um canal de retorno, possivelmente em banda larga, e tudo o que os radiodifusores não querem é ver alguém conectando uma banda larga na TV e implodindo com o controle que eles exercem sobre a televisão brasileira’.
Celso Schroeder, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), avalia que o resultado disso é um modelo ‘onde se tem a menor convergência possível, a menor possibilidade de intercâmbio entre as várias plataformas e entre os vários serviços possíveis de telecomunicação e comunicação’.
TV digital para ninguém
Os conversores não têm dado só o que falar na ausência de funcionalidades. A questão mais polêmica dos primeiros dias da TV digital tem sido o alto custo destas caixinhas, com preços variando entre 500 reais e 1 mil reais. O valor tem afastado os telespectadores do usufruto da nova tecnologia, gerando o risco da televisão digital ser assistida por uma pequena elite de pessoas de alta renda.
Durante todo o período de preparação para o início das transmissões, o ministro das Comunicações Hélio Costa prometeu reiteradamente que o conversor chegaria a 200 reais, o que não se confirmou. Em um gesto de desespero, Costa partiu para o ataque aos fabricantes afirmando que estes estariam boicotando a TV digital ao inflar os preços, uma vez que no Japão o conversor sai por volta de 100 dólares.
A resposta concreta foi o anúncio de um programa de incentivos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no montante de 1 bilhão de reais que financiaria a compra do conversor no varejo. Reportagens recentes, entretanto, mostraram que estão sendo usados recursos de outro programa do banco destinado ao financiamento da aquisição de infra-estrutura de transmissão para as emissoras que estão migrando para o sistema digital.
Independente do volume e origem dos recursos, o que passa despercebido na cobertura sobre o caso é o gasto de dinheiro público (por meio destes financiamentos e da isenção fiscal para a indústria) para ‘correr atrás do prejuízo’ e corrigir equívocos do próprio governo, que poderia ter dado ouvidos a especialistas e institutos de pesquisa que, à época da escolha da tecnologia a ser adotada pelo Brasil, já apontavam que o padrão japonês poderia gerar custos altos pelo fato de a tecnologia carecer de escala, já que é utilizada somente naquele país. Além disso, outros componentes internacionais foram incorporados, tornando a tecnologia utilizada no SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital) uma composição única no mundo.
Para Gustavo Gindre, a decisão do governo é equivocada. ‘Graças ao dinheiro público, o governo ajudará na venda de aparelhos que não captam imagens em alta definição, que não têm interatividade e que serão utilizados para que o usuário assista a mesma programação disponível na TV analógica. Ou seja, o governo vai subsidiar a compra de seletores de canais. E quando, no futuro, houver interatividade, tais aparelhos terão que ser jogados no lixo’, critica.
O ministro Hélio Costa respondeu as críticas afirmando que ‘o conversor vai cair de preço vertiginosamente nos próximos meses’, apostando em um movimento dos fabricantes e no ganho de escala pelo aumento das compras. No entanto, pesquisa feita pelo Instituto Qualibest com 2 mil internautas mostrou que 44% dos entrevistados não pretendem comprar o conversor agora e vão esperar ‘o assunto amadurecer’. Outros 56% afirmaram só comprar se o preço chegasse aos 200 reais. Apesar da curiosidade, não é possível assegurar que a parcela de maior renda da população – cujo papel na geração de escala e redução do seu preço é fundamental – irá comprar o conversor, uma vez que boa parte dela já dispõe do serviço de televisão por assinatura, com imagem igual ou melhor e maior oferta de canais.
Política industrial?
Se não conseguiu cumprir a promessa de ser ampla, inclusiva, ampliadora do número de canais e interativa, a TV digital brasileira tampouco está contribuindo para fortalecer uma política industrial da área de microeletrônica como anunciou a ministra Dilma Rousseff na escolha da tecnologia nipônica, em junho de 2006. Entre as contrapartidas dos japoneses estaria a construção de uma fábrica de semicondutores no Brasil, a formação de mão-de-obra especializada e a transferência de tecnologia.
Em artigo publicado no sítio especializado TeleSíntese, a jornalista Lia Ribeiro resume o fato. ‘Da hipotética fábrica de difusão de semicondutores ao centro de desenvolvimento de design de chip, passando pela garantia de mercado a produtos fabricados aqui. Ao final das negociações, a montanha pariu um rato’, analisa. Já das inovações produzidas pelos consórcios que desenvolveram pesquisa para o Sistema Brasileiro de Televisão Digital em 2005, só o Ginga luta para ser incorporado aos conversores, em uma disputa de futuro incerto.
Democratização
Em meio aos debates e polêmicas tecnológicas, o professor César Bolaño afirma que o problema não está nem nos aparelhos nem nos programas, mas sob quais regras e com qual finalidade eles serão usados. ‘O problema não está na tecnologia. Vamos ao que interessa: como democratizar a televisão, abertura do espectro eletromagnético para a entrada de novos atores, especialmente os não-hegemônicos, financiamento da produção independente, regional, comunitária e para TVs públicas, com desconcentração, promoção do conteúdo nacional e inclusão social e digital’, propõe.
Mas para isso é preciso superar a polêmica sobre o preço dos conversores para chegar ao debate que as emissoras de televisão não querem realizar: como organizar o modelo brasileiro para utilizar todas as potencialidades deste novo meio para ampliar o número de fontes de informação e cultura, com um conteúdo interativo e conectado com os outros meios de comunicação neste irreversível processo de convergência tecnológica.
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Do Observatório do Direito à Comunicação