Ele não é só bem-educado, tem cara de bonzinho, voz mansa e parece ser temente a Deus, mesmo porque é pastor. Bom, nem todo pastor tem voz mansa. Preciso sempre baixar o som quando entra no computador ou no celular um vídeo do conhecido pastor Silas Malafaia, ao que parece conselheiro espiritual (ou político?) do presidente Bolsonaro que, até hoje, não se sabe se é católico, espírita ou evangélico. Sabe-se apenas que se batizou no rio Jordão, como o Messias; seus seguidores queixam-se de que estão querendo crucificá-lo, cumprindo as profecias bíblicas. Se isso acontecer, não poderá ressuscitar os 550 mil mortos pelo coronavírus.
Mas voltemos ao pastor de ovelhas, dóceis e fiéis seguidoras do presidente Bolsonaro, chamadas irreverentemente de gado pelo ex-ministro Ricardo Salles, atualmente na moita, acusado de exportação ilegal de madeira e responsável por um recorde digno do Livro Mundial de Recordes: incentivou o desmatamento de um terço das árvores do Pantanal e deflorou com incêndios e serras a Floresta Amazônica. Morreram também indígenas (para que tantas terras para tão poucos índios? diziam em Brasília) mas como são ainda pagãos, não convertidos a cristãos evangélicos e sem registro no cartório, ficou por isso mesmo.
Voltemos ao pastor. Na verdade, um pastor nas horas vagas, porque como advogado-geral da União, não tem tempo e nem disponibilidade para pregar “a boa palavra” toda quarta e todo domingo. Pastor presbiteriano, mas não formado em teologia pelo tradicional Seminário Presbiteriano de Campinas, criado pelo missionário americano Ashbel Green Simonton, em 1888. Também pelas mesmas razões, não poderia frequentar um seminário: seu curso de três anos foi online, no Seminário Teológico Sul-Americano, de Londrina, FTSA, não-denominacional, que, reconhecido pelo MEC, passou a ser Faculdade Teológica Sul Americana.
A FTSA, cuja sigla é “Preparando vidas para servir o Reino de Deus”, foi inspirada na Fuller School of Mission and Theology, de Pasadena, Califórnia, criada por batistas congregacionais. A posição teológica da Fuller é fundamentalista, conservadora, baseada exclusivamente na Bíblia. Tudo se baseia nas questões espirituais do cristianismo evangélico, nada a ver com as correntes sociais, interessadas em propor uma leitura social do cristianismo dentro da realidade do mundo. O objetivo é, portanto, promover a conversão das pessoas, no caso os sul-americanos, ao evangelho cristão, à vida cristã e à espera da vinda do Reino de Deus. Em outras palavras, nada a ver com as preocupações terrenas atuais. Alguém diria: pura alienação.
Deixemos de lado, por enquanto, o pastor, para vermos como tem sido o cristianismo evangélico no Brasil. Em outros textos, aqui mesmo no Observatório, já tratamos da posição autoritária da Igreja Presbiteriana do Brasil e sua cumplicidade com o aparelho ditatorial militar, depois do golpe de 64. Ao contrário, a Igreja Católica tinha paralelamente ao cristianismo ortodoxo e majoritário nas igrejas uma visão de conquistas sociais com sua Teologia da Libertação, Ação Popular e suas Comunidades Eclesiais de Base.
Consultando uma tese acadêmica, descobri que a denominação Assembleia de Deus teve mesmo um herói na luta pela reforma agrária contra as práticas latifundiárias no Maranhão. Um professor de escola dominical e auxiliar de pastor se tornou militante político contra a ditadura: Manoel da Conceição, posteriormente exilado na Europa.
Em todo caso, agindo como um bloco, as igrejas Presbiteriana, Assembleia de Deus, Metodista e Batista não foram contra o golpe, mas tomaram uma posição oficial em favor da ditadura militar mesmo na fase de maior repressão. A Assembleia de Deus pregava principalmente contra o comunismo e criticava a Teologia da Libertação.
Antes do golpe e na época da discussão da Reforma Agrária, onde se destacava Francisco Julião na luta pela terra, houve a Conferência Evangélica do Brasil, promovendo diversos encontros, todos com o apoio internacional do Conselho Mundial de Igrejas. Em 1962, os presbiterianos promoveram uma Conferência do Nordeste, com o título Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, na qual se destacavam João del Nero, Jorge César Mota, Waldo César, João Dias de Araújo e Richard Shault.
João Dias de Araújo era professor no Seminário Presbiteriano do Recife e numa entrevista, “se manifestou a favor da participação dos evangélicos nos movimentos sociais, nos sindicatos, nos partidos políticos, e que deveriam tomar parte no processo revolucionário para a transformação do Brasil em bases democráticas cristãs”. Mas o clima começou a mudar já em 1963, com a reação dos líderes presbiterianos conservadores.
Um deles, que estivera na Conferência do Nordeste, afirmou no IV Congresso da Mocidade, ao ser perguntado sobre como deveria agir o jovem presbiteriano, “que o jovem deveria se opor ao materialismo, resistindo por meio da fé à influência de professores incrédulos. As reformas de base mais necessárias ao Brasil, eram a do coração e do caráter”.
E o presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana Independente afirmava que a solução para os problemas brasileiros não estava nem na direita nem na esquerda, a solução era Cristo.
De uma maneira geral, o avanço evangélico na interpretação dos problemas sociais brasileiros foi interrompido com o golpe de 64, sucedendo-se demissões de pastores, denúncias, prisões e mortes. Extirpada a preocupação social de dentro das igrejas evangélicas durante o longo período da ditadura, até hoje não houve nem tempo nem condições para se recuperar essa visão social das igrejas.
Foi essa situação doutrinária fundamentalista e conservadora a causa principalmente dos evangélicos terem se atrelado ao candidato à presidência Jair Bolsonaro, apesar de seu programa de extrema-direita e de suas declarações em contradição com o credo evangélico. O tema é longo, mas importante, e merece ser retomado.
Agora é a hora do pastor
Enfim, vamos retomar o tema do pastor terrivelmente bolsonarista, André Mendonça, candidato ao Supremo Tribunal Federal e em campanha junto aos senadores.
Seria aceitável sua candidatura, num Estado laico, ao testemunhar sua profunda e singela crença evangélica aos repórteres do UOL, no ano passado, dizendo: “creio em Jesus, ele me salvou”? Salvou do quê? Do inferno?
Com uma formação teológica fundamentalista e conservadora e uma profunda fé (mesmo um tanto pueril), se torna difícil entender, pois é também advogado e jurista, ter aceitado apoiar Bolsonaro nas eleições, quando o atual presidente já fazia declarações incompatíveis com o credo cristão. Qualquer pessoa inteligente e com curso médio teria percebido se tratar de um candidato de extrema direita. Se apoiou, foi por ter visualizado alguma vantagem, se não pessoal, para os evangélicos.
A função de um ministro do STF implica em decisões envolvendo questões definidas pela religião ou pelos dogmas da fé. É possível se imaginar que ele possa decidir deixando de lado suas convicções evangélicas que envolvam, por exemplo, aborto, homossexualidade e interesse das igrejas? Não, porque fervente devoto, não iria trair os preceitos bíblicos divinos em favor de um Estado temporal.
Enfim, pesam também contra ele suas decisões de aplicar a Lei de Segurança Nacional, da época da ditadura, contra quem criticou o presidente, passando por cima da liberdade de expressão num regime democrático. Agiu como um pastor conservador e fundamentalista, defendendo seu presidente como defende Deus.
Em todo caso, o clima atual nada favorável a Bolsonaro, irá influir no voto dos senadores. A visível fidelidade ao presidente poderá agora ser fatal.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.